INICIAÇÃO FEMININA:
ASTROLÓGICA, MÁGICA, ALQUÍMICO-HERMÉTICA
OU CABALÍSTICA?
por António de Macedo
J’ai toujours été étonné qu’on laissât les femmes entrer dans les églises. Quelle conversation peuvent-elles avoir avec Dieu ? L’éternelle Vénus (caprice, hystérie, fantaisie) est une des formes séduisantes du diable.
Charles Baudelaire, Mon coeur mis à nu : journal intime (1868)
Eis uma coisa que tem feito correr muita tinta, coisa estranha essa, a da «iniciação feminina». Pois aqui me preparo para fazer correr mais alguma… Aliás o tema deste colóquio sobre «Discursos e Práticas Alquímicas» — colóquio que desde 1999 se vem realizando e afirmando, e sempre inovador e com intervenções de elevada qualidade —, bem se prestava a tais lucubrações, pois o tema deste ano é precisamente «Alquimias do Feminino»[1] Não podia ser mais provocatório nem mais apelativo! Claro que não foi por acaso que fiz anteceder estas despretenciosas cogitações com um sintomático texto de Baudelaire, cuja unica desculpa — se é que pode ser-lhe concedida — foi tê-lo desovado em pleno século XIX, quando a Igreja conseguia pensar mais mal das mulheres do que hoje (e a sociedade laica não lhe ficava muito atrás…); a verdade é que duma forma ou doutra parece que as relações da mulher com o sagrado — seja este devocional, seja iniciático — nunca foram lá muito bem compreendidas pelos que se dedicam a investigar estas profundas coisas.
Deixo para outros mais sociólogos, mais antropólogos, mais etnólogos, mais politólogos, mais poetas e mais competentes do que eu a discussão sexo/género que tal temática se arrisca entusiástica e desvirtuosamente a atiçar. Limitar-me-ei a atrever-me com o meu modesto arado a lavrar uns sulcozitos num terreno onde me sinto mais familiarizado: o da Esoterologia. Assim sendo, vamos por partes. Antes de mais, tratemos de bisbilhotar um pouco de história das Ordens iniciáticas, continuando a esgravatar com determinação e paciência até chegarmos, eventualmente — oxalá tenhamos sorte, sabença e inspiração das musas! —, a algum apuramento final.
1. Os Mistérios antigos
CERIMONIA DE INICIAÇÃO NOS MISTÉRIOS ELEUSIANOS
Representação alegórica de J.A.Knapp
Comecemos por uma trivialidade que toda a gente conhece mas vale sempre a pena relembrar: a palavra mistério tem origem na raiz mu-, ou my-, donde derivam dois verbos gregos: myeô, que significa «iniciar nos Mistérios», «sagrar», «instruir», e myô, que significa «fechar a boca ou os olhos», «guardar silêncio». Uma curiosidade menos conhecida é que da mesma raiz derivam o termo latino mutus, «mudo», e o termo grego muthos ou mythos, e isto, em minha humilde opinião, não deixa de ser iluminante: revela-nos que o silêncio se associa ao mito, tal como silenciosa deverá ser a Iniciação Menor, myêsis, que se completa pela Iniciação Maior, teletê, sendo que esta última deriva do verbo teleô, que significa simultaneamente «concluir» e «iniciar», que é como quem diz, «iniciar nos mais altos Mistérios», ou nos Mistérios de plenitude ou de perfeição (Guénon 1986, 123-125). (Complete-se: — o mito, ou o arquetípico mistério do silêncio, perde esse mistério quando se vulgariza ao nível da fábula, ou da mera comunicação verbal: fábula [lat. fabula] deriva do verbo latino fari, fatu, «falar»).
Hermes sobre Typhon, JAKnaap.
Hermes,como a personificação da Sabedoria Universal está aqui representado com o pé sobre o dorso de Typhon, o dragão da ignorancia e da perversão. Para os Iniciados Egípcios, vencer o dragão devorador das almas era se libertar da necessidade de renascer.
De acordo com este fio condutor, os mistérios (gr. ta mystêria) são a teoria de ritos (gr. ta drômena, «actos») que conduzem iniciaticamente do silêncio à perfeição, e isto tanto no antigo Egipto como na Pérsia, na Síria, na Frígia, na Fenícia, na Grécia… em suma, estamos a referir-nos de uma forma geral aos chamados «Mistérios Antigos», que segundo os autores que os mencionam (Heródoto, Porfírio, Jâmblico, Apuleio, Plutarco, Cícero, Arnóbio, Heliodoro, Luciano, Rufino, etc.) comportariam sete graus iniciáticos. Já os Mistérios cristãos, mais elevados espiritualmente, têm nove graus iniciáticos, ou nove Iniciações Menores, embora se mantenha a ideia de perfeição associada às Altas Iniciações como podemos observar nas epístolas de Paulo. Quando este apóstolo menciona os teleioi, está a fazer uma referência esotérica aos Altos Iniciados nos Mistérios cristãos, e não apenas aos «perfeitos» em religião exotérica cristã, conforme se poderia supor ao ler as traduções eclesiásticas das Bíblias correntes. Veja-se por exemplo o seguinte texto paulino: «Entre os Iniciados [gr. en tois teleiois] porém, falamos sabedoria [gr. sophia]; não a sabedoria deste éon [gr. aiôn] nem a dos chefes deste éon condenados a perecer; mas falamos a sabedoria de Deus [gr. Theoû sophia] em mistério, a oculta, que Deus predestinou antes dos éons para nossa glória [gr. doxa, «opinião», «juízo», «glória», «manifestação»], (e) que nenhum dos chefes deste éon conheceu; pois se a tivessem conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da glória» (1 Coríntios 2, 6-8).
PITÁGORAS
Em certas circunstâncias, a antiga Iniciação numa dada Escola de Mistérios podia ser preparatória para outra mais elevada, como terá sido o caso de Pitágoras que antes de se iniciar nos Mistérios Egípcios começou por ser iniciado nos Mistérios Fenícios: «…Velejou para Sídon, sua pátria natural, convencido que daí mais facilmente passaria para o Egipto. Aí conversou com os profetas que eram descendentes de Mochus [Moisés] o fisiólogo, e com outros, e também com os Hierofantes Fenícios. Foi do mesmo modo iniciado em todos os Mistérios de Byblos e de Tyro, e nas sagradas operações que se realizam em muitas partes da Síria» (Jâmblico, Vita pythagorica, III). Já agora aproveitemos para esclarecer que o termo physiologos, atribuído a Moisés, significa «estudioso da natureza e dos mistérios naturais».
MITHRA NA FORMA DE KRONOS
J.A.Knapp
De uma forma geral, na Antiguidade, as iniciações mistéricas eram concedidas sectorialmente — ou a certas castas, ou a um ou outro dos dois sexos; por exemplo as mulheres eram excluídas nos Mistérios Essénios ou nos Mistérios de Mithra, tal como eram excluídos os homens na Ordem das Sacerdotisas de Inanna (Suméria), nas Thesmophorias de Deméter (Atenas) ou na Ordem das Vestais (Roma). Por muito estranho que pareça e por muito que irrite os actuais defensores da «igualdade dos sexos» (vade retro! — vive la petite différence!), isto tinha razão de ser e estava certo, e já veremos mais abaixo porquê. (Eu compreendo que os tais defensores da «igualdade dos sexos» se exprimem mal e quereriam dizer igualdade de oportunidades e direitos, humanos, sociais, políticos, intelectuais, profissionais, etc. etc. e não igualdade tout court, Deus nos livre desta, teríamos de ser todos hermafroditas como os caracóis…)
2. A origem das Ordens
ABRAXAS, UM PANTEÃO GNÓSTICO
Representa os sete poderes criativos ou anjos planetários reconhecidos pelos antigos.
J.A.Knapp
Uma Ordem iniciática não é propriamente um clube, em que a exclusão masculina ou feminina possa ser decretada por sexismo primário ou por velho costume obsoleto, como ocorre por exemplo nos clubes exclusivamente masculinos ou exclusivamente femininos de certas universidades americanas, já para não falar nos clubes ingleses «só para homens» ou nas reuniões de vendas de tupperware «só para mulheres»… Numa Ordem iniciática, desde que tenha sido instituída e mantida por «tradição regular», a transmissão e infusão de certo nível de conhecimentos e do correlativo despertar de faculdades ocultas, ou seja, a Iniciação, implica, antes de mais, a quádrupla purificação através dos elementos (provas da terra, água, ar e fogo) a fim de se alcançar a plenitude do conhecimento (Gnose) e correlativa iluminação espiritual; por outro lado, só pode ser realizada de acordo com linhas vibracionais bem definidas, sob pena de essa transmissão ser nula ou ter efeitos nefastos sobre o incauto que a tal prática se exponha sem estar devidamente qualificado.
No caso específico das Iniciações sectorizadas, quer femininas, quer masculinas, nas antigas Ordens (ou em Ordens que tenham trazido até à actualidade alguma forma de regular transmissão iniciática), a Iniciação regular opera-se de acordo com as estruturas esotéricas que qualificam, em maior ou menor grau, uma operação oculta ou iniciática em quanto tal, isto é, tomando os seguintes corpos disciplinares (ou pelo menos algum deles) como «grelhas de referência»: Astrologia, Magia, Alquimia-Hermetismo e Cabala. Com efeito, todo e qualquer discurso esotérico, bem como toda e qualquer operação esotérica, assentará as suas premissas, as suas inferências e os seus segredos em um ou vários dos quatro corpos disciplinares acabados de referir (cf. Macedo 2006, 71; 83-91). Além disso, terá de haver uma razão de «compatibilidade» que confira legitimidade mística ou oculta a tais Iniciações sectorizadas, como veremos, justificando do mesmo passo o porquê de a um ser humano de um dado sexo não convirem esotericamente as vibrações ritualísticas apropriadas à Iniciação do sexo oposto.
MAGO EVOCANDO ELEMENTAIS
J.A.Knapp
Certos autores, mais pessimistas, afirmam que a origem das Ordens se perde na noite dos tempos. Em parte é verdade, mas também é verdade que existem textos legítimos e assaz respeitáveis que nos podem proporcionar pistas preciosas. Um deles é nada mais, nada menos, do que a própria Bíblia! Podemos, assim, afirmar com razoável segurança que a primeira vez que surge o conceito de «Ordem» é no livro dos Salmos, ainda que o seja numa perspectiva messiânica (segundo a hermenêutica cristã): «Jahvé jurou e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a Ordem de Melquisedec» (Salmo 109 [110], 4).
Esta expressão: «segundo a Ordem de Melquisedec», em hebraico ‘al-diberathoi Maleki-tsedeq, é vertida em grego, na Septuaginta, como kata tên taxin Melchisedek, em que a palavra «ordem» é dada por taxis, -eôs, termo que significa precisamente «ordem», «ordenação hierarquizada», «enfileiração», etc. É um termo simultaneamente jurídico, militar, religioso e organizacional: taxis deriva do verbo pós-homérico tassô, etagên, taktos, que significa «enfileirar», «atribuir um lugar», «pôr por ordem» — como um exército num campo de batalha. O equivalente latino, ordo, ordinis, não se afasta muito desta acepção, com significados técnicos congéneres, tanto na línguagem militar, como por exemplo centurio primi ordines, como na línguagem religiosa, por exemplo: ordines sacerdotum et levitarum (Vulgata).
Qual a importância, para o nosso caso, da primordial «Ordem de Melquisedec»?
3. A Ordem de Melquisedec e as formas iniciáticas originárias
Na epístola aos Hebreus do Novo Testamento estabelece-se uma analogia entre Melquisedec, rei de Salem, e Cristo, sumo sacerdote da Ordem de Melquisedec (Hebreus 5, 6; 5, 10; 6, 20; 7, 11; 7, 17). O nome Melquisedec é formado por duas palavras hebraicas, maleki tsedeq, que significam «rei de justiça», ou «o meu rei é justiça». Por sua vez Salem significa «paz»; portanto, a Ordem de Melquisedec é a Ordem da Justiça e da Paz, e como Melquisedec era simultaneamente rei e sacerdote, eis-nos perante uma época recuadíssima em que ainda se não havia criado a fractura entre o poder real (associado ao Fogo) e o poder sacerdotal (associado à Água). Veremos mais adiante que ambos esses poderes, real e sacerdotal, são sagrados, em oposição aos poderes e actos profanos. Conforme nos relata o livro do Génesis, Melquisedec é a primeira figura bíblica dos tempos patriarcais a fazer um sacrifício não sangrento, de pão e vinho, em antecipação tipológica da Eucaristia Crística e ao arrepio do antigo costume dos sacrifícios de carne e sangue comuns a diversas formas de religião:
«Melquisedec, rei de Salem e sacerdote do Deus Altíssimo [hebr. El-Elyôn], mandou trazer pão e vinho, e abençoou Abrão dizendo: Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra! Bendito seja o Deus Altíssimo que entregou os teus inimigos nas tuas mãos! E Abrão deu-lhe o dízimo de tudo» (Génesis 14, 18-20).
Registe-se, entre parênteses, que nesta época o famoso patriarca ainda se chamava Abrão, que quer dizer «pai elevado». Só depois de Jahvé ter multiplicado a sua descendência passou a chamar-se Abraão, que significa «pai duma multidão».
Por outro lado, o derramamento sacrificial do vinho em vez do derramamento sacrificial do sangue é altamente significativo do ponto de vista alquímico: a tal união ancestral de Água e Fogo, ou seja, do poder sacerdotal e do poder real, fracturada em determinado momento histórico e novamente reinstaurada com o advento de Cristo, Rei e Sacerdote, é-nos dada precisamente pelo alcoólico vinho, síntese alquímica de água e fogo, tal como o Sangue, sede do Espírito, é uma essência relacionada com o Fogo. Relembremos a afirmação de João o Baptista referindo-se a Jesus: «Eu baptizo-vos com Água […], mas aquele que vem depois de mim […] baptizar-vos-á com o Fogo do Espírito Santo» (Mateus 3, 11).
Durante todo o longo, lento e penoso período da separação dos dois poderes, ou das duas linhagens, a linhagem real e a linhagem sacerdotal, as Iniciações assumiram — ou tiveram de assumir — determinadas formas e determinados padrões, de acordo com as épocas e as tradições esotéricas ou para-esotéricas onde se inserem e onde operam.
Podemos assim distinguir:
I. Formas de Iniciação proto-patriarcal (ver: Heindel 199510):
— Iniciação real ou cainita;
— Iniciação sacerdotal ou sethiana.
II. Formas de Iniciação pré-cristã (ver: Magnien 1938):
— Iniciação holoklêros;
— Iniciação sacerdotal;
— Iniciação hierofântica, ou real.
III. Formas de Iniciação proto-esotérica (ver: Tourniac 1993):
— Iniciação de ofício;
— Iniciação cavaleiresca;
— Iniciação sacerdotal.
IV. Formas de Iniciação cristã esotérica (ver: Heline 19886; Macedo 20002):
— Mistérios Menores (Marcos, Mateus, Lucas);
— Mistérios Maiores (João).
Algumas das subdivisões destas formas iniciáticas foram interrompidas em dado momento histórico e extinguiram-se, outras, raras, têm conseguido manter-se até hoje; outras, ainda, mantêm-se na aparência mas já perderam o Fogo espiritual original: um fio tradicional, uma vez seccionado, não se pode reatar, tal como um fio telefónico, uma vez cortado, deixa de transmitir mensagens ainda que se lhe dê um nó. Se alguém descobrir os antigos rituais de uma tradição iniciática perdida e decidir recomeçar a aplicá-los, de nada servirá: o Fogo vem de cima, não de baixo. Se não houver uma nova Onda de Luz trazida pelos Mestres — ou pelos Superiores Incógnitos, no dizer de Fernando Pessoa —, bem podem os oficiantes recitar as fórmulas e executar os gestos rituais que não farão mais do que lidar com cascas vazias — e a transmissão não passa.
DIAGRAMA REPRESENTANDO A EVOLUÇÃO DOS REGENTES HUMANOS E SUPERHUMANOS SEGUNDO MAX HEINDEL, Freemasonry and Catholicism
(1) A Primeira Era, quando cada ser humano era uma unidade criadora completa, macho-fêmea, bissexual e regida por um Hierarca, Melquisedeque, que exercia o duplo cargo de Rei e Sacerdote.
(2) A Segunda Era, quando a divisão da raça em homens e mulheres, e a divisão de governo em Estado e Igreja, causaram guerras e lutas. O Estado abraça a causa da Paternidade e do Homem e eleva o ideal masculino das Artes, Ofícios e Indústria, encarnado em Hiram Abiff. A Igreja abraça a causa da Maternidade e da Mulher e mantém erguido o ideal feminino do amor e do lar, encarnado na Madona e seu filho. São os interesses conflitantes entre o homem e a mulher, o lar e o trabalho, a Igreja e o Estado, que causam as lutas econômicas, a guerra e as disputas com as quais a humanidade é atormentada e faz com que todos desejemos e oremos pelo reino da paz.
(3) A Terceira Era, quando um Cristo divino que, como Melquisedeque, exercerá o cargo duplo de Rei e Sacerdote e reinará sobre uma humanidade purificada e glorificada que se elevou do amor-sexo ao amor-alma.
[1]Referência ao colóquio onde esta comunicação foi apresentada: VII Colóquio Internacional—Discursos e Práticas Alquímicas: «Alquimias do Feminino», 22 a 24 de Junho 2007, Lamego, Portugal.
4.O estabelecimento das Ordens e os mitos fundadores
3. A Ordem de Melquisedec e as formas iniciáticas originárias |
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12. Das tradições mesopotâmica e judaica à modernidade ocidental |
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