O Que São os Demónios
Confundem-se, muitas vezes, na linguagem vulgar, os significados míticos e religiosos de certas palavras. Quando se fala da religião dos gregos, por exemplo, e da sua influência 1 no cristianismo, desperta-se logo a ideia de fábulas, ora encantadoras, ora grosseiras, que os poetas da Grécia nos contaram 2 . Esta confusão tem a sua razão de ser e a sua desculpa, porque há aspectos religiosos e esotéricos na base de todas essas histórias. Mas, entre nós, é preciso evitá-la.
Definir o significado exacto de cada palavra associada a uma religião é sempre muito difícil. As palavras do vocabulário religioso são, em regra, antiquíssimas, têm longo uso; e a etimologia só fracamente nos esclarece sobre o significado primitivo desse termo.
Vamos, então, estudar duas ou três palavras associadas a potências sobrenaturais e espirituais, que se acredita serem capazes de influenciar os simples viventes.
Comecemos pelo Antigo Testamento.
A Tradição Hebraica
Se nos reportarmos à tradição bíblica, vemos que a ideia do mal é algo indefinido; ou seja, ele existe, mas não é incorporado em determinada personagem. No A.T. não se dá notícia clara sobre a "queda do anjo". 3
Encontramos, de facto, muito poucas vezes, a palavra satã (hebraica) ou satanás (de origem aramaica). Mas não tem ainda personalidade definida. 4 Não tem qualquer implicação divina ou demoníaca; não representa o rival de Deus nem o criador do mal, nem tão pouco o sedutor ou tentador. É uma palavra usada fundamentalmente na linguagem jurídica, dos tribunais, com o sentido de "acusador" ou "Delegado do Procurador da República", como hoje diríamos. 5 No livro de Job vê-se claramente esta função, onde aparece como um ser celeste, ao serviço de Deus.
Na tradição judaica mais primitiva, era, pois, um dos anjos de Javé ou, então, significava "obstáculo" ou "adversário" (na tradição hermética equivale a Saturno, o criador de dificuldades). Só mais tarde, sob influência das soluções do tipo dualista para os problemas da existência, como vemos nas crenças dominantes na Pérsia, em que há uma dualidade entre o princípio do Bem, Deus, e do Mal, satan passou a significar o mau, o acusador, o tentador.
O livro de Zacarias, que é um texto tardio do A.T., escrito em finais do séc.
IV a.C., já reflecte essa dualidade. Satan opõe-se agora ao "anjo de
Javé". 6
A Época Helenística
Com o tempo, esta e muitas outras palavras mudaram de significado, como reflexo das mudanças de mentalidade pública. Os gregos traduziram-na por diabolos. 7 Desde o séc. VI a.C., significa "aquele que atira alguma coisa (ballo) contra alguém (diá)". Os judeus que traduziram o A.T. para o grego, em Alexandria, por volta do séc. III a.C., usaram esta palavra para significar simplesmente "acusador". 8
Outra palavra usada era daimon, demónio. O sentido mais antigo é exclusivamente grego, não bíblico. Para os habitantes da Grécia era uma divindade inferior, que tanto podia ser boa como má. Só o N.T. é que se lhe refere como um "espírito mau". 9 Nos Actos é mencionado como uma divindade estranha (Act.17, 18). Segundo a etimologia mais provável, deriva de daio, dividir, separar.
Os tradutores que verteram para o grego o A. T. usaram a palavra
daimon 10
para se referirem, também, a diversos génios, seres espirituais
com diversas funções e a quem por vezes se prestava culto, e aos espíritos dos
mortos (Is. 8,19).
O Advento do Cristianismo
Falámos da tradição hebraica, responsável pela gestação do cristianismo. Veremos, agora, que esta nova religião, universal, viveu um longo período em que as tradições se chocavam, para se ajustarem com o corpo de doutrina oficial. Surgiram várias seitas, como a dos gnósticos, e as heresias multiplicaram-se. E neste ambiente de conflito, a teologia cristã, que se tinha encontrado com as ideias tardias judaicas sobre o mal, ficou ainda mais distorcida pela fusão com a cultura helenística. 11 O universo foi dividido em dois reinos, o de Deus e do Diabo. Desta divisão resulta que, tudo o que se afasta de Deus (ainda que aparentemente), é fruto do mal. É o caso de todas as formas de resistência à nova religião e, por conseguinte, também o judaísmo. O cristianismo, assumido como a única religião verdadeira, excluiu e identificou com Demónio todos os outros credos.
E, assim, ao contrário de Javé no judaísmo, Deus, no cristianismo, passou a
contar com um formidável adversário.
A Pedagogia do Medo
Incorporando, pois, todas as crença da antiguidade, as ideias associadas a um ser causador de todo o mal impõem-se na vida dos cristãos. O mundo entra em desequilíbrio e, vivendo entre Deus e o seu adversário (um trágico dualismo que, embora não admitido dogmaticamente, é vivido na prática), o homem deve aprender a combater a tentação, dia-a-dia. E assim treina a sua força de vontade e capacidade de discernimento.
Nos primeiros anos do feudalismo ainda não existe o medo esmagador dessas criaturas espirituais ou potências maléficas. Iria aparecer mais tarde.
A partir do séc. XIII o medo aumentou e contribuiu para a onda de pânico
generalizado ligada à crise do feudalismo no séc. XIV. 12 No séc. XV, no momento do triunfo do
Humanismo, aparece a primeira descrição dos terrores do ano 1000, pelo abade
Tritémio. O medo desmesurado dos seres maléficos é associado à espera do fim do
mundo e atinge o auge na época das Reformas.
O que são os Demónios
Os demónios são, na realidade, os corpos-de-pecado 13 que têm origem no comportamento perverso, dirigido para a satisfação do vício, actos brutais, etc. Muitas aparições de espectros ou fantasmas, erradamente atribuídas aos espíritos, têm origem nestas sombras, espécie de nuvens. Depois da morte, o corpo físico desintegra-se, mas o corpo-de-pecado é uma criação que persiste, separadamente, por anos e anos, muitas vezes até que a pessoa que lhe deu origem renasça. E, então actua como seu tentador, empurrando-a para a repetição dos vícios antigos. Pode ser até o causador de doenças físicas. 14
Estas criaturas sem alma, criadas pelas nossas más acções, podem ser usadas
por espíritos sub-humanos, chamados elementais. Podem agir como obsessores e
prejudicar consideravelmente o desenvolvimento saudável. 15 Às vezes prejudicam gerações
inteiras e podem estar na origem dos assassínios praticados pelos caçadores de
cabeças das Filipinas ou dos estranguladores da Índia. Todos eles praticam o
assassínio como um ritual religioso.
16
Conclusão
Ficou claro que, para o cristianismo vulgar, a ideia associada à palavra satã e às suas diferentes traduções, mistura, da maneira mais irreligiosa, as verdades da religião-sabedoria com as histórias e fantasias populares tão gratas às massas ignorantes. E incorpora, além disso, os comportamentos divergentes da crença oficial, levando os crentes a reconhecerem-nos e a evitarem-nos. Mas, em vez de solucionar o problema e tranquilizar as consciências, os esforços das religiões reforçaram as crenças alheias ao cristianismo. Os homens fizeram mais do que acreditar: acreditaram na realidade dessas crenças.
Francisco Coelho
Glossário
Dogma. Verdade
declarada e proposta como tal pela Igreja para crença dos
fiéis.
Dualismo. Princípio filosófico que esteve na origem de
numerosas doutrinas. Admite a existência simultânea e irredutível do corpo e do
espírito, do bem e do mal, etc.
Etimologia. Parte da gramática que
estuda a origem e a formação das palavras.
Gnóstico. Adepto do
gnosticismo, doutrina desenvolvida nos primeiros séculos da era cristã.
Incorporava o cristianismo, o misticismo hebraico, doutrinas egípcias,
babilónicas e persas.
Helenismo. Expressão usada para designar a
cultura procedente da Grécia, propagada sobretudo como resultado das conquistas
de Alexandre Magno. Estendeu-se do centro da Ásia até Roma e incorporou as
tradições orientais aos antigos elementos culturais gregos.
Teologia.
Estudo doutrinário que trata de Deus, de sua natureza, atribuições e relações
com o homem e o universo.
Delumeau, Jean — La
Peur en Occident, (XIV-XVII siécles), Paris, 1978; Eliade, Mircea —
História das Crenças e das Ideias Religiosas, R. Janeiro, 1978; Nogueira,
Carlos Roberto F. — O Diabo no Imaginário Cristão, S. Paulo, 1986;
Piñero, Antonio — En El Nombre del Diablo, Universidad Complutense,
Madrid, 1997; Vine, W. E. — Diccionário Expositivo de Palavras del Nuevo
Testamento, vol I, Barcelona, 1984;
1 Como o culto de Mitra.
2 Os Gregos representaram, numa época
antiquíssima, as Forças ou Espíritos da Natureza, os espíritos humanos e outros
seres sob a forma de seres humanos superiormente belos e inteligentes, mas
também com os mesmos defeitos.
3
Na versão de Alexandria do Salmo 95, por exemplo, o nome hebreu
que se toma por "demónios" (daimonia) é Elohim, o que prova que a
identificação dos deuses estrangeiros com os demónios é uma ideia posterior à
redacção do salmo.
4
Como o demonstra a presença do artigo "o" junto à palavra: o
satã.
5 Nos
países do continente americano o "Promotor Público" tem funções
idênticas.
6
Zac., 3,1.
7
De diaballõ, acusar, caluniar.
8 Sal.,108,6.
9 Como em Mt. 8.31.
10 Daimonion não é,
como por vezes se diz, erradamente, o diminutivo de daimon, mas o neutro
do adjectivo daimonios (que pertence ao demónio).
11 A ideia cristã de Deus, no
Ocidente, é uma fusão eclética da Bíblia da ontologia grega.
12 A intensificação das catástrofes e
o aumento da miséria provocou o delírio nas consciências, que buscavam,
aterrorizadas, no demónio, as suas causas. Desprovidos de conhecimentos, os
primeiros cristãos atribuíam todos os desastres à tentativa de subversão da
ordem natural pelos demónios. Esta crença manteve-se durante a Idade Média e no
próprio S. Tomás de Aquino (Summa, I, q.80).
13 Formado pelos corpos vital ou
duplo etéreo e corpo de desejos ou astral, amalgamados
14 Max Heindel, O Véu do
Destino, Cap. IV, Corpo de Pecado e Autopossessão, pgs, 37- 41;
Lisboa, 1997; Lc., 13, 10 e segs.
15 Max Heindel, ob. cit. Cap. IV.,
Elementais, p.41.
16
Max Heindel, ob. Cit. Cap. V, id..
Fonte: REVISTA ROSACRUZ, editada pela Fraternidade Rosacruz de Portugal
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