FILOSOFIA
As Religiões de Mistérios e o Cristianismo
Travou-se uma luta constante entre os partidários das diversas tendências da "nova religião" – o cristianismo. Não havia delimitação precisa entre elas: todas se interpenetravam e influenciavam mutuamente. Esta situação de conflito manteve-se até à elaboração dos livros que formaram o cânone. Aos livros repudiados chamaram "apócrifos".
Podem, assim, ser encontradas no Novo Testamento (NT) as marcas da influência do judeo-cristianismo, do gnosticismo e de outras doutrinas religiosas. Nos séculos II e III, os defensores do cristianismo referiam-se-lhes com frequência, não só para as criticarem, mas também para invocarem a sua autoridade.
Se o estudo das escrituras veneradas no início da nossa era e a que a Igreja chama apócrifas, secretas ou falsas nos permite reconstituir a verdadeira história do cristianismo original e analisar o desenvolvimento da tradição cristã, seus interesses, opiniões e aspirações, o estudo do NT revela até que ponto o cristianismo absorveu os traços do messianismo judaico e dos cultos orientais, particularmente os egípcios, a filosofia idealista greco-romana, etc1.
Da mesma área geográfica vieram também cultos que forneceram algum conforto: as religiões de mistérios. O apelo de Mitra (derivado da Pérsia), o culto de Ísis e Osíris (de origem egípcia) e o de Elêusis (grego), inicialmente suspeitos, foram ganhando importância, principalmente entre aqueles que não sofreram a influência dos tradicionais sentimentos de superioridade manifestados pela aristocracia romana em relação aos povos subjugados.
É um facto, porém, que os mistérios não atraíam as massas populares. Os seus adeptos eram, essencialmente, as pessoas mais bem educadas; uma boa parte dos cidadãos não possuía nem a inteligência nem o desafogo financeiro necessários para pagar as elevadas contribuições exigidas2.
1 – Religiões de Mistérios3
O que se sabe dos mistérios de Elêusis, apesar de se terem celebrados todos os anos durante cerca de dois milénios, é quase nada. A razão desta ignorância deve-se ao carácter secreto das celebrações. Nesta religião eram iniciados todos os atenienses; depois, foi admitida a totalidade dos gregos, e até estrangeiros, como o imperador romano Antonino Pio. A todos eles era imposto, no entanto, um cauteloso "non liquet", um prudente silêncio. A indiscrição era punida com a morte. Ruch (1981) admite que Sócrates foi sentenciado à morte por ter feito revelações acerca dos mistérios4.
Durante as cerimónias ingeria-se uma bebida a que se dava no nome de kykeon (mistura). Preparava-se com água, cevada, blechon (ou glechon) que era, talvez, poejo (Mentha pulegium). Parece que esta bebida provocava visões, provavelmente devido ao efeito alucinogénio da "cravagem do centeio".
A maior parte da informação disponível sobre estes mistérios tem origem no Hino Homérico a Deméter. Os seus ritos celebravam-se anualmente em fins de Setembro e princípios de Outubro. Os ritos preparatórios tinham lugar na Primavera, com a celebração dos "Mistérios Menores"5.
Os mistérios de Elêusis extinguiram-se no século IV, durante a expansão do cristianismo.
Uma outra manifestação religiosa que arrebatou a mentalidade grega foi a dionisíaca. O culto de Dionísio celebrou-se desde o século XV a. C. Dionísio era o deus da vitalidade e tinha como símbolos a videira e a hera. Realizavam-se quatro grandes festivais em sua honra: um, chamado Antestérias, tinha lugar em Fevereiro; outro, as Leneias, em Janeiro; o terceiro, chamado Dionísias Rurais, em Dezembro; e o quarto, o mais importante, as Dionísias Urbanas, acontecia na Primavera.
2 – O Novo Testamento
Ao abordarmos um tema como este, nunca podemos esquecer a questão da linguagem. Para transmitir a sua doutrina, os autores armam-se de esquemas sociais, religiosos ou culturais e de imagens da própria cultura e do momento histórico em que vivem. O conhecimento de Deus e as expressões que se utilizam para falar dele estão condicionados pela imagem que temos do mundo. E como não o vemos, temos de usar palavras que designam coisas diferentes dele. É a linguagem da metáfora, do símbolo e também do mito. O estudo comparado das literaturas grega e bíblica permite estabelecer algumas analogias.
Os documentos mais antigos citados no NT são as cartas de S. Paulo, a primeira das quais foi escrita cerca de 48 d.C. Vamos ver o que nos diz o apóstolo acerca do baptismo, que é o primeiro sacramento cristão, no sentido em que se trata do instrumento pelo qual o indivíduo é admitido na congregação. Recorde-se que os banhos lustrais já eram praticados, por exemplo, na Europa Setentrional. O cristianismo, ao introduzir este rito, não teve necessidade de substituir outras práticas, mais antigas6, apesar de os evangelhos sinópticos7 não registarem qualquer instrução de Cristo para que os discípulos recebessem o sacramento do baptismo8. E entre os Essénios, por exemplo, o baptismo tinha uma vocação espiritual e iniciática, como se vê pelos seus escritos, onde se vislumbra já uma verdadeira cristologia9.
Lemos em Gál. 3, 26-27: "porque todos sois filhos de Deus, pela fé... porque todos quantos fostes baptizados em Cristo, já vos revestistes de Cristo...". Paulo associa o baptismo à morte para o pecado. O baptismo torna-se uma morte simbólica, virtual, que permite ao crente ressurgir dos mortos (Rom 6,4)10. E como participamos, por imitação, da morte de Jesus, também o podemos imitar na ressurreição, já que "aquele que está morto está justificado no pecado" (Rom 6,7). O ponto de vista do apóstolo, que admite a regeneração do cristão pelo baptismo e pela fé, encontra paralelo nas crenças dos iniciados nos mistérios de Elêusis, para os quais a fé e a participação nas angústias e alegrias de Deméter garantia uma imortalidade auspiciosa11.
Em Rom 6, 4-11, encontramos um texto onde ressalta uma linguagem simbólica, referências históricas, ideias morais, crenças escatológicas e místicas num conjunto que deve ser analisado de acordo com as experiências do próprio autor. Mas pode-se estabelecer facilmente um paralelo entre este passo bíblico e práticas das religiões de salvação pré-cristãs, especialmente com os cultos de mistérios em que a regeneração para a imortalidade se associa a ritos que promovem a identificação mística do iniciado com o deus que morre e depois ressuscita12.
O que se encontra aqui posto em evidência, no "corpus paulinum", é o difícil problema da linguagem associado à infiltração no cristianismo dos cultos orientais e religiões de mistérios. Problema a que não nos podemos esquivar, porque, seja qual for o ângulo sob o qual se observem as actividades do espírito, a linguagem corrente não deixa nunca de ser inadequada para descrever as condições suprafísicas13.
O carácter limitativo da linguagem tomará um relevo embaraçante quando se apreciam realidades transcendentes, de natureza esotérica, independentes de qualquer parecer humano. Há indicações de que este problema se acentuou com a infiltração das crenças e mitos das religiões antigas, à medida que o número dos não-cristãos começou a aumentar na igreja nascente, trazendo para ela os seus hábitos mentais, tradições e atitudes emotivas, ligados à mitologia grega ou asiática. É o que vemos nos evangelhos de S. Mateus e S. Lucas.
Além dos quatro evangelhos conhecidos, existiam dezenas de outros escritos do mesmo género que, por razões diversas, não foram incluídos no NT. E mesmo os que foram incluídos no cânone não cessaram de ser retocados, como afirma Celso14.
Admite-se que o evangelho de Marcos, o mais curto e unanimemente considerado o mais antigo, seja também o mais fiel. Marcos deve ter registado aquilo de que se lembrava das palavras de Pedro, de quem foi intérprete15. Este evangelho, compilado em meados do ano 70 d.C.16 e que nada diz sobre o nascimento de Jesus, foi amplamente utilizado como fonte por Mateus e Lucas. Entre os ebionitas circulou uma versão do evangelho de Mateus sem a genealogia de Jesus17. Mas, nos seus primeiros dois capítulos, que foram adicionados no século II, e nos primeiros três do evangelho de S. Lucas, já se vê nitidamente a influência da cultura helénica, capaz de aceitar mais facilmente um salvador nascido miraculosamente, tal como nos mistérios pagãos. Foi por este motivo que os autores – ou revisores – dos evangelhos de Mateus e Lucas inseriram a narrativa do nascimento tal como a conhecemos hoje.
Mateus, como Paulo, serviu-se da versão grega do Antigo Testamento (AT), chamada dos "Setenta", "Septuaginta" ou "Alexandrina", feita no século III a.C18. Os seus tradutores, que ainda viviam num ambiente culturalmente influenciado pelo mito de Istar, desconheciam a língua hebraica, ou, pelo menos, eram pouco versados nela, porque se encontravam na diáspora, traduzindo então o original hebraico de um modo livre". Assim, traduziram a palavra hebraica ’almah (jovem núbil), do livro de Isaías, por parthénos (virgem)20. Ora, na sua genealogia, Mateus apoia-se no fragmento de Is 7,14, que é usado completamente fora do contexto da profecia. A narrativa profética de Isaías relaciona-se com a História do Reino do Sul (722-586 a.C). No início da sua actividade profética, Isaías relacionou-se com o rei pró-assírio Acaz e defendeu a neutralidade do monarca com a Síria e a Assíria. Este conselho, confirmado por outros profetas israelitas, foi entendido como sendo uma análise essencialmente religiosa, porque as alianças entre países exigiam o reconhecimento formal das divindades dos aliados. Acaz submeteu-se à Assíria, ignorando o conselho baseado nos nomes de três jovens, que são referidos em Is 7,3: Sear-Iasub, (O Resto Voltará) ; em Is 7,14: Emanuel (Deus Connosco) e em Is 8,3: Maer-Shalal-Haz-Baz (Pronto-Saque-Próximo-Pilhagem). O primeiro e o terceiro eram, inconfundivelmente, filhos do próprio Isaías e o contexto sugere claramente que o segundo, Emanuel, também era filho do profeta21.
É surpreendente que Mateus, à parte da citação de Isaías, ao referir-se a Maria, mãe de Jesus, use também o termo gyné (1, 20-24)22. Há quem pretenda ver aqui, como na expressão "segundo a carne", em Rom. 1, 3, apenas uma relação jurídica, uma vez que Jesus, na sua condição de filho de David, tinha de ser juridicamente filho de José. Mas não era esse o pensamento de Paulo, para quem o sinal da filiação divina de Jesus não era o nascimento, mas a ressurreição, como se vê em Rom 1, 4.
Há, pelo menos, três passos nas cartas pastorais (que segundo vários críticos não teriam sido escritas por Paulo, talvez com excepção da Carta a Filémon) em que se adverte os cristãos para não darem crédito "a fábulas profanas e de velhas caducas, discussões insensatas, genealogias, etc.": 1 Tim 4,7; 2 Tim 4,4; Tit 3,9.
Pela sua actualidade, esta salutar recomendação merece ser relida e carece de ser meditada por toda a gente que se interesse verdadeiramente por compreender os graves problemas e opções que hoje se apresentam ao homem no estudo das religiões.
3 – Conclusão
Disse Clemente de Alexandria: "Antes do advento de Cristo, Deus deu aos hebreus a Lei e aos Gregos a Filosofia". Queria este autor dizer que reconhecia a função preparatória, mesmo pedagógica, de uma e de outra. É fácil identificar a presença da filosofia grega no sistema teológico cristão e a sua função preparatória para o cristianismo que há-de ser, no futuro, a religião universal23. O mesmo se pode dizer das religiões antigas. Pelo que sabemos dos mitos e lendas, verifica-se que até os mais fantásticos contêm preciosos grãos ocultos de factos espirituais. Em conjunto, conduziram à preparação material, contribuindo com ritos para o corpo. Constituiram também uma preparação psicológica, com os dogmas para a inteligência e a moral para a alma. Afinal de contas, o cristianismo, que parece ter sido rejeitada no seio do judaísmo que o engendrou, foi acolhido por todas as outras nações do vasto Império Romano, onde a conversão ocorria sem qualquer pressão do poder temporal.
F. C.
Notas
1. Irina Sventsístkaia, "Os Primeiros Cristãos", Ed. Caminho, Lisboa, 1990, p. 249.
2. J.G.Davies, "As Origens do Cristianismo", Ed. Arcádia, Lisboa, 1967, p.52-53.
3. Mistério: palavra usada pelos autores trágicos, designando aquilo que não se pode ou não se deve dizer. No plural, é quase exclusivamente um termo que designa uma espécie de festas ou celebrações, como as de Elêusis, a partir do século XVIII a.C.
4. C.A.P. Ruck, "Mushrooms and Philosophers", H. Ethnopharmacol, 4, p. 179-205, 1981.
5. Maria Helena da Rocha Pereira, "Estudos de História da Cultura Clássica", Fundação C.Gulbenkian, 1979, 5ª ed., p. 266, n.16.
6. Edward Burnett Tylor, "Cultura Primitiva", Vol. 2: "La Religión en la Cultura Primitiva", Ed. Ayuso, Madrid, s/d, p. 471.
7. Os evangelhos de Mateus, Lucas e Marcos são chamados "sinópticos" devido ao parentesco que há entre eles e que facilmente se pode ver numa sinopse, uma visão de conjunto.
8. Na época, a palavra "sacramentum" significa uma importância em dinheiro oferecida aos deuses. Depois é que passou a traduzir o "mystérion" grego.
9. Raoul Vaneigem, "As Heresias", Ed. Antígona, Lisboa, 1995, p. 24.
10. Alfred Loisy, "Los Misterios Paganos y el Misterio Cristiano", Paidós, Barcelona, 1990, p. 195.
11. Para compreender o sentido simbólico do texto, convém lembrar que S. Paulo se refere ao baptismo por imersão, associando a imagem do corpo imerso ao do corpo sepultado.
12. Alfred Loisy, ob. cit., pp 193-194.
13. Max Heindel, "Conceito Rosacruz do Cosmo", 3ª ed, F.R.P., Lisboa, 1998, pág. 35.
14. Citado por J. Lentsmean, "As Origem do Cristianismo", Ed. J. Bragança, Lisboa, 1976, p. 33. Cf. Celso, "Contra os Cristãos", Livro 3, Ed. Estampa, Lisboa, 1971.
15. Irina Sventsístkaia, "Os Primeiros Cristãos", Ed. Caminho, Lisboa, 1990, p. 198; Cf. Gunther Bornkamm, "Bíblia - Novo Testamento", Ed. Paulinas, p. 58.
16. Gunther Bornkmann, ob. cit., 53.
17. Irina Sventsístkaia, ob. cit. p. 214.
18. José Comblim, "Paulo, Apóstolo de Jesus Cristo", Ed. Vozes, Petrópolis, 1993, p. 17.
19. Depois da queda da Samaria (722) e a de Jerusalém (586), a diáspora judaica encontrou-se a viver num mundo helenizado, sobretudo após a conquista de Alexandre Magno. Para tanto, a diáspora judaica do Egipto viu-se obrigada a traduzir a Bíblia Hebraica para a língua grega. Uma lenda que chegou até nós fala da tradução grega como sendo obra de 70 autores israelitas, e daqui provém o nome de tradução dos LXX. O nome de "alexandrina" deve-se à cidade de Alexandria, onde a tradução foi feita. Cf. Joaquim Carreira das Neves, OFM, "A Teologia da Tradução Grega dos Setenta no Livro de Isaías", Coimbra, 1973, p.9.
20. Foi também por influência da cultura grega que a cidade de Éfeso, na Ásia Menor, que tinha como padroeira, no tempo de Jesus e de Paulo, a deusa grega Ártemis (Diana para os romanos), um dos muitos nomes da Grande Deusa Mãe - a Magna Mater - acolheu o concílio de 431, em que se aprovou o dogma do Theotókos.
21. Norman K. Gottwald, "Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica", Ed. Paulinas, S. Paulo, 1988, p. 353-357.
22. Lothar Coenen e outros, "Dicionário Teologico del Nuevo Testamento", vol, II, Ed. Sigueme, Salamanca, 1999, p. 133.
23. Max Heindel, "Conceito Rosacruz do Cosmo", 3ª ed., Lisboa 1998, pág. 291.
- Fonte: Revista "Rosacruz", Fraternidade Rosacruz de Portugal
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