O que é o Esoterismo?
O substantivo «esoterismo» é de formação relativamente recente, por comparação com o adjectivo «esotérico», de origem grega, donde deriva.
O adjectivo eksôterikos, -ê, -on («exterior, destinado aos leigos, popular, exotérico») já existia em grego clássico, ao passo que o adjectivo esôterikos, -ê, -on («no interior, na intimidade, esotérico») surgiu na época helenística sob o Império romano. Diversos autores os utilizaram. Veremos dentro em pouco alguns exemplos.
Têm a sua origem, respectivamente, em eisô ou esô (como preposição significa «dentro de», como advérbio significa «dentro»), e eksô (como prep. significa «fora de», como adv. significa «fora»). Destas partículas gramaticais (preposição, advérbio) os gregos derivaram comparativos e superlativos, tal como no caso dos adjectivos. Em regra, o sufixo grego para o comparativo é -teros, e para o superlativo é -tatos. Por exemplo, o adjectivo kouphos, «leve», tem como comparativo kouphoteros, «mais leve», e como superlativo kouphotatos, «levíssimo». Do mesmo modo, do adv./prep. esô obtém-se o comp. esôteros, «mais interior», e o sup. esôtatos, «muito interior, interno, íntimo».
O adjectivo esôterikos deriva, portanto, do comparativo esôteros. Certos autores, porém, talvez mais imaginosos, propõem outra etimologia, baseada no verbo têrô que significa «observar, espiar; guardar, conservar». Assim, esô + têrô significaria qualquer coisa como «espiar por dentro e guardar no interior».
Platão (427-347 a. C.) no seu diálogo Alcibíades (aprox. 390 a. C.) utiliza a expressão ta esô no sentido de «as coisas interiores», e no diálogo Teeteto (aprox. 360 a. C.) utiliza ta eksô com o significado de «as coisas exteriores». Por sua vez Aristóteles (384-322 a. C.) utiliza o adjectivo eksôterikos na sua Ética a Nicómaco (I, 13), cerca do ano 350 a. C., para qualificar o que ele chama os «discursos exotéricos», ou seja, as suas obras de juventude, de fácil acesso a um público mais geral.
O primeiro testemunho do adjectivo esôterikos encontramo-lo em Luciano de Samosata (aprox. 120-180 d. C.) na sua obra satírica O Leilão das Vidas, § 26 (também chamado O Leilão das Escolas Filosóficas), composta cerca do ano 166 d. C.
Mais tarde, os adjectivos eksôterikos e esôterikos passaram a ser aplicados, por engano, aos ensinamentos de Aristóteles por Clemente de Alexandria (aprox. 150-215 d. C.) na sua obra Strômateis, composta cerca do ano 208 d. C.: «As pessoas da escola de Aristóteles diziam que, entre as suas obras, algumas são esotéricas e outras destinadas ao público ou exotéricas» (Strômateis, Livro V, cap. 9, 58). Clemente supunha que Aristóteles era um iniciado, e portanto seriam «esotéricos» os ensinamentos que facultava no seu Liceu a discípulos já instruídos. Na verdade era apenas um ensino oral e Aristóteles qualificava-o como «ensinamento acroamático», que quer dizer «transmitido oralmente», nada tendo de esotérico no sentido iniciático do termo.
O teólogo alexandrino Orígenes (aprox. 185-254 d. C. ), discípulo de Clemente, já usa ambos os adjectivos em conotação com o «oculto», ou melhor, o «iniciático»; contestando as críticas do anti-cristão Celso, diz Orígenes: «Chamar oculta à nossa doutrina é totalmente absurdo. E de resto, que haja certos pontos, nela, para além do exotérico e que portanto não chegam aos ouvidos do vulgo, não é coisa exclusiva do Cristianismo, pois também entre os filósofos era corrente haver umas doutrinas exotéricas, e outras esotéricas. Assim, havia indivíduos que de Pitágoras só sabiam “o que ele disse” por intermédio de terceiros; ao passo que outros eram secretamente iniciados em doutrinas que não deviam chegar a ouvidos profanos e ainda não purificados» (Contra Celsum, Livro I, 7).
O termo «esotérico» começou a ser usado como substantivo a partir de Jâmblico (aprox. 240-330 d. C.), filósofo e místico neoplatónico que se refere aos discípulos da escola pitagórica nos seguintes termos: «Estes, se tivessem sido julgados dignos de participar nos ensinamentos graças ao seu modo de vida e à sua civilidade, após um silêncio de cinco anos, tornavam-se daí em diante esotéricos, eram ouvintes de Pitágoras, usavam vestes de linho e tinham direito a vê-lo» (Vita Pythagorica, cap. 17, 72).
O conceito de «esoterismo» é de criação muito mais recente. Johann Gottfried Herder (1744-1803), que se opôs ao racionalismo Iluminista da sua época, foi o primeiro autor a utilizar a expressão esoterische Wissenschaften («ciências esotéricas»), referenciável no tomo XV das suas Sämtliche Werke, e o substantivo l’ésotérisme surgiu pela primeira vez na obra Histoire critique du gnosticisme et de ses influences (1828), de Jacques Matter. Na sequência, deve-se ao ocultista e cabalista Eliphas Lévi (1810-1875) a vulgarização dos termos «esoterismo» e «ocultismo» (este último na sua acepção moderna e mais lata de corpus de «ciências ocultas», diferente da Occulta Philosophia, ou Magia, de Agrippa, por exemplo). A partir de então o termo adquiriu uma voga crescente, sobretudo depois que Helena P. Blsvatsky, A. P. Sinnett, Annie Besant, C. W. Leadbeater, etc., da corrente teosofista da Sociedade Teosófica popularizaram o conceito, desde o último quartel do século xix e ao longo dos inícios do século xx.
Paralelamente, certos autores começaram a encarar o estudo do esoterismo de um ponto de vista mais académico, não se considerando, eles mesmos, «esotéricos», mas investigadores quer da história quer das ideias de determinadas correntes espirituais, místicas ou ocultas. Entre estes contam-se por exemplo, nos finais do século xix, George R. S. Mead e Arthur Edward Waite, cujos trabalhos, apesar de tudo, ainda se encontram a meio-caminho entre o «discurso esotérico» e a pesquisa universitária. No primeiro quartel do século xx, Max Heindel (1865-1919) estabeleceu a distinção técnica entre «o oculto» e «o místico», e, embora inserido numa específica corrente esotérica, deu forma consistente, nas suas obras, quer à vertente mística quer à vertente oculta do esoterismo. Por sua vez Rudolf Steiner (1861-1925), igualmente inserido numa corrente esotérica bem definida, abordou o esoterismo segundo um duplo enquadramento, ocultista e científico. René Guénon (1886-1951) trabalhou o esoterismo, genericamente, segundo uma perspectiva mais filosófica do que histórico-crítica, tendo o cuidado de distinguir entre o esoterismo cristão, o islâmico e o védico; todavia, o grande impulso para o estudo do esoterismo de um ponto de vista de investigação académica surgiu a partir de 1928, com a tese de Auguste Viatte sobre o Iluminismo, seguindo-se-lhe as pesquisas e os trabalhos de Will-Erich Peuckert sobre a pansofia e o rosacrucianismo, de Lynn Thorndike sobre a história da magia, da Prof.ª Frances A. Yates sobre o Iluminismo rosacruz e o esoterismo renascentista, etc., devendo-se a esta última o principal estímulo para uma pesquisa universitária, rigorosa, incidindo sobre o «território esotérico», o que fez alterar o respectivo panorama investigacional a partir dos anos 60 e 70 do século xx. O prof. Antoine Faivre, mais recentemente, chama a atenção para os estudos de Ernest Lee Tuveson sobre o hermetismo na literatura anglo-saxónica dos séculos xviii e xix, e de Massimo Introvigne sobre os movimentos «mágicos» dos séculos xix e xx, sobretudo pelo facto de proporem abordagens novas, interdisciplinares.
Actualmente, é já bastante vasto o leque de autores que estudam o esoterismo em ambiente de investigação académica, tendo-se tornado consensual a designação de «esoterólogos» para alguns desses investigadores, o que pressupõe uma ciência da Esoterologia que está a ter acolhimento nos curricula de algumas Universidades. Nem todos coincidem, porém, nas suas posições e definições do campo investigacional do «esoterismo», podendo de certo modo, e sem tentar uma conciliação entre os diferentes autores, dizer-se que existem vários «esoterismos».
Por amor à brevidade, limitar-me-ei a salientar alguns esoterólogos contemporâneos cujos trabalhos são de capital relevância para a compreensão do «objecto temático» do esoterismo:
Prof. Antoine Faivre — Director de Estudos da École Pratique des Hautes Études - Section Sciences Religieuses (Sorbonne, França);
Dr. Wouter J. Hanegraaff — Professor de História da Filosofia Hermética e Correntes Relacionadas - Faculdade de Humanidades da Universidade de Amesterdão (Holanda) e orientador de pesquisas sobre História das Correntes Esotéricas - Departamento de Ciência das Religiões da Universidade de Utrecht (Holanda);
Prof. Pierre A. Riffard — Investigador de Metodologia de Esoterismo e professor Catedrático na Université de Novakchott (Mauritânia);
Prof. Massimo Introvigne — Historiador das Correntes Esotéricas Contemporâneas e Director do Centro Studi sulle Nuove Religioni, Turim (Itália);
Prof. Roland Edighoffer — Professor emérito na Université de Paris III (Sorbonne Nouvelle, França);
Prof. José Manuel Anes — Grão-Mestre da GLRP/LP (Maçonaria Regular de Portugal) e professor de História das Correntes Esotéricas no Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões da Universidade Nova de Lisboa (Portugal).
Em termos muito simplificados podemos dizer que duas grandes tendências gerais se perfilam entre estes autores: uma, poder-se-á designá-la por «universalismo pró-esotérico», e outra, por «estruturação histórico-crítica». O prof. Wouter J. Hanegraaff ainda considera uma terceira tendência a que chama «formas de anti-esoterismo», que, por não serem indispensáveis neste breve resumo, me abstenho de considerar aqui.
Na linha do «universalismo pró-esotérico» incluem-se os trabalhos e a actividade universitária de professores como Pierre A. Riffard e José M. Anes, por exemplo. Segundo Riffard, o esoterismo tanto existe no Ocidente como no Oriente, desde a pré-história até aos nossos dias, e tem a ver com o mistério da existência tal como é percebido pelos seres humanos; além disso, Riffard critica certos investigadores académicos que procuram estudar o esoterismo «de fora», como se pudesse existir um «fenómeno cultural esotérico» independentemente do esoterismo em si. Segundo Riffard, a essência do esoterismo é, ela mesma, «esotérica»; na sua monumental obra de perto de 400 páginas, L’ésotérisme, Riffard interroga-se: «Pode alguém ser um esoterólogo sem ser, ao mesmo tempo, um esotérico?» De acordo com este ponto de vista, elabora uma descrição do esoterismo segundo as oito invariáveis que, em sua óptica, o caracterizam:
(1) A impessoalidade do autor; (2) A oposição esotérico/exotérico; (3) A noção de «o subtil» como mediador entre o espírito e a matéria; (4) Analogias e correspondências; (5) A importância dos números; (6) As ciências ocultas; (7) As artes ocultas; (8) A Iniciação.
Uma posição totalmente diferente é assumida pelos profs. Antoine Faivre e Wouter J. Hanegraaff, por exemplo, defensores da linha «histórico-crítica». Segundo Faivre não se deve falar em «esoterismo» mas em «esoterismos», ou melhor, em «correntes esotéricas e místicas», uma vez que ele considera que não há um esoterismo em si, mas apenas correntes, autores, textos, etc. Para que o esoterismo constitua uma especialidade académica reconhecida pela comunidade científica, Antoine Faivre define-o do seguinte modo, de acordo com a Direcção de Estudos da «Section des Sciences Religieuses» (Sorbonne), que ele mesmo integra com outros docentes: um corpus de textos que constituem a expressão dum certo número de correntes espirituais, na história Ocidental moderna e contemporânea, ligadas entre si por um «ar de família», bem como uma «forma de pensamento» que subjaz a essas correntes. Considerado de forma extensiva, esse corpus estende-se da Antiguidade tardia até hoje; considerado de forma limitativa, abarca um período que vai do Renascimento até à época contemporânea.
Isto implica que, ao contrário das teses «universalistas», ficam excluídos do conceito de esoterismo alguns significados que Antoine Faivre enumera de modo a deixar bem claro o que, de acordo com o seu critério, o esoterismo «não é»: (a) Um termo genérico, mais ou menos vago, que serve para os editores e livreiros classificarem colecções de livros ou rotularem prateleiras, e onde cabem o paranormal, as ciências ocultas, as tradições sapienciais exóticas, etc.; (b) Um termo que evoca a ideia de ensinamentos secretos e uma «disciplina do arcano», com diferenciação entre iniciados e profanos; (c) Um termo aplicável a um certo número de processos mais experienciais que racionais, e que se aproxima da ideia de Gnose no sentido universal, propondo-se atingir, mediante certas técnicas experienciais, o «Centro do Ser» (Deus, o Homem, a Natureza, etc.), não se excluindo, desta concepção, uma atitude filosófica que advoga a «unidade transcendente» de todas as religiões e tradições.
Em contrapartida, aquela «forma de pensamento» que Faivre considera como própria do conceito de esoterismo distinguir-se-ia por seis características ou componentes fundamentais, das quais quatro são «intrínsecas», no sentido em que a sua presença simultânea é uma condição necessária e suficiente para que um discurso seja identificado como esotérico, e duas são «secundárias» ou «extrínsecas», e cuja presença pode ou não coexistir ao lado das outras quatro. São elas:
(1) A ideia de correspondência («O que é em cima é como o que é em baixo», segundo a Tábua da Esmeralda ) (2) A Natureza viva (o Cosmos não é apenas complexo, plural, hierarquizado, etc.: é sobretudo uma Grande Entidade Cósmica viva); (3) Imaginação e mediadores (a imaginação é a faculdade superior de penetrar nos códigos que se ocultam nos mediadores, os quais, por sua vez, são os rituais, as imagens do Tarot, as mandalas, etc., etc., símbolos carregados de polissemia cuja decifração cognitiva permite o acesso ao mundus imaginalis definido por Henri Corbin); (4) A experiência da transmutação (percurso espiritual simbolizado alquimicamente por três graus: nigredo, ou obra em negro, morte, decapitação; albedo, ou obra elevada ao branco; e rubedo, ou obra elevada ao vermelho, pedra filosofal); (5) A prática da concordância (prática que visa descobrir os denominadores comuns a duas ou mais tradições aparentemente distintas, na expectativa de que, mediante esse estudo comparativo, se alcance o «filão escondido» que levaria à «Tradição primordial», da qual todas as tradições e/ou religiões concretas seriam apenas os «galhos» visíveis da grande «árvore» perene e oculta); (6) A transmissão (conjunto de «canais de filiação» pelos quais se processa a continuidade de mestre a discípulo, ou de iniciação no interior duma sociedade, no pressuposto de que ninguém se pode iniciar sozinho e que o «segundo nascimento» passa obrigatoriamente por esta disciplina).
Outros autores simplificam a questão considerando que o esoterismo se constituiu no Ocidente como disciplina autónoma, a pouco e pouco, a partir de finais da Idade Média, porque a teologia e a ciência absorveram certos temas que o integravam, eliminando outros que, por serem mais inquietantes ou pertencerem ao imaginário mais perturbador, acabaram, com essa expulsão ou mesmo perseguição, por integrar as correntes esotéricas ocidentais, sobretudo a partir do Renascimento. No Oriente , pelo contrário, a teologia contém os temas esotéricos e por conseguinte o esoterismo não precisa de se constituir como disciplina aparte. Segundo este ponto de vista, pode-se falar em esoterismo associado às varias escolas e tendências que se desenvolveram no Ocidente na linha dos ensinamentos de Marsilio Ficino (1433-1499), de Pico della Mirandola (1463-1494) e de Johannes Reuchlin (1455-1522), esoterismo esse que floresceu, sobretudo, na Europa e nos séculos xvi e xvii. A sua principal característica é a rejeição da linguagem comunicativa como expressão da verdade, e a pretensão de que é nas camadas não-semânticas da linguagem que se oculta a antiga Sabedoria. Em extensão a este conceito, não se pode ignorar a importância do pensamento judaico e dos textos hebreus na Europa, cujo torat hasod (conhecimento esotérico) constituiu um corpo específico de tradições secretas na cultura judaica, no centro do qual, e a partir do século xiii, se encontra a Cabala, que teve uma influência de indiscutível relevo no esoterismo cristão.
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