A COSMOLOGIA DOS ROSACRUZES

 

 

 

Antonio de Macedo

 

Devo começar por dizer que o uso da palavra Cosmologia no título desta minha comunicação é, à primeira vista, um tanto provocatório, porque o associo a uma doutrina «oculta» quando normalmente se deve associar à ciência, e o termo que se costuma utilizar associado ao Rosacrucianismo é Cosmogonia.

Bom, aqui teria de fazer um breve desvio para explicar a diferença entre o «místico» e o «oculto»: o primeiro relaciona-se com a fé, a devoção e o coração — é um enquadramento cordial, ao passo que o segundo se relaciona com a razão, o intelecto e a mente — é um enquadramento mental. Daí o facto de se poder falar em «ciências ocultas», enquanto dificilmente se poderia compreender uma expressão como «ciências místicas»! Assim, não será excessivo, segundo esta óptica, falar de Cosmologia a respeito da «ciência oculta» que é a Filosofia Rosacruz…

Mesmo assim, considero indispensável um parêntesis, neste ponto, uma vez que certos autores se insurgem contra a associação do termo «ciência» a vocábulos inerentes a «campos» como a Astrologia, a Magia, a Alquimia ou, genericamente, ao Ocultismo. Realmente, se nos ativermos ao significado que a palavra «ciência» passou a ter sobretudo após as obras clássicas de Henri Poincaré La Science et l’Hipothèse (1906) e Science et Méthode (1908), bem como os trabalhos sobre teoria e filosofia da ciência de Karl Popper (1902-1994), o método científico não se compadece com uma expressão como por exemplo «Ciência dos Magos», corrente em philosophia occulta. Com efeito, Popper considera como «pseudo-ciências» a Astrologia, a Alquimia, a Metafísica, o Historicismo marxista e até a Psicanálise freudiana, porque não se encaixam no seu critério de «falsificabilidade». A ciência académica, portanto, descarta tudo quando não se reduza aos seguintes vectores: (1) a observação e a experimentação veiculadas através dos cinco sentidos ou de artefactos tecnológicos que os prolonguem e/ou amplifiquem, e (2) a razão que organiza os dados observáveis em teorias coerentes, de preferência segundo o modelo matemático.

Bom, mas não sejamos demasiado reducionistas! A mesma palavra pode ter, sem escândalo, acepções diferentes consoante o «território» onde se contextualiza. Por exemplo o termo «plataforma» adquire significados radicalmente distintos consoante o situamos no «território» ferroviário, no informático, ou no da construção civil. O mesmo se passa com a ciência. O importante é usar expressões compósitas que indiquem sem ambiguidades qual o território onde a respectiva «ciência» se insere: por exemplo, se usarmos esse termo aplicado à Física, à Química ou à Astronomia não temos dúvidas quanto ao seu significado; do mesmo modo, quando dizemos «Ciência dos Magos» ou classificamos a Astrologia ou a Alquimia como «Ciências Sagradas», estamos claramente noutro território, aquele em que scientia significa um conhecimento ou um saber antigos, organizados mas não necessariamente matematizantes, sejam secretos (esotéricos) ou divulgáveis (exotéricos), e do mesmo passo as dúvidas desaparecem e deixa de haver contradição ou sequer confusão.

Ora bem: após este rápido esclarecimento, retomemos o fio à nossa meada. Começarei por referir que a ciência, no sentido académico, tem ao longo dos tempos entendido de forma ligeiramente diferente o significado de ambos aqueles ramos do saber científico: Cosmogonia e Cosmologia:

• Fase 1 (antes dos anos 70 do século xx):

Cosmogonia: Ramo da Astronomia que estuda a formação do Sol e a origem e evolução dos restantes corpos do sistema solar;

Cosmologia: Ramo do Astronomia que estuda o nascimento, a estrutura e a evolução do Universo, no seu conjunto.

• Fase 2 (depois dos anos 70 do século xx):

Cosmogonia: Ramo da Astronomia que estuda o comportamento evolucionário do Universo, bem como a origem das suas características, incluindo o sistema solar;

Cosmologia: Campo de estudos interdisciplinares em que se associam várias ciências naturais, nomeadamente a Astronomia, a Física, a Astrofísica, a Paleontologia, etc. num esforço conjunto para compreender o Universo como um todo unificado.

A título de curiosidade, e entre parêntesis, refira-se uma terceira ciência «cósmica» que eu ainda estudei nos meus longínquos tempos liceais, a Cosmografia, uma palavra hoje caída em desuso mas que teve a sua voga antigamente: é uma espécie de descrição elementar da esfera celeste e dos corpos e círculos que a integram (o equador celeste, a eclíptica, etc.), de um ponto de vista geocêntrico. A Astrologia, por exemplo, tal como a navegação marítima e a navegação aérea, fazem mais apelo à antiga Cosmografia do que à Astronomia propriamente dita. Um dos mais veneráveis e conhecidos tratados de Cosmografia, por exemplo, foi o famoso Tratado da Esfera, do inglês João Sacrobosco (século xiii).

Em geral, pelo menos em certos círculos, insiste-se na tendência de associar a Cosmogonia à especulação mítico-religiosa sobre a origem do Universo, de um ponto de vista quer místico, quer oculto, quer teológico, ao passo que a Cosmologia fica mais sob a alçada da ciência académica, ou das várias ciências implicadas, que se debruçam sobre esse estudo, embora «ignorando», de certo modo, o problema da origem — ou do t = 0 (o ponto zero em que o tempo começou) — , para se concentrarem no estudo do que aconteceu depois do big bang. Na verdade, especular sobre o que aconteceu  antes de t = 0 não terá muito sentido, porque «antes» implica o conceito de tempo, e onde não há tempo não pode haver antes nem depois

Numa outra conferência deste Colóqio já se falou aqui da génese mítica do Cosmos entre os gregos; por exemplo, nos versos 115 a 125 da Teogonia, o velho Hesíodo (sécs. viii-vii a. C.) pede às Musas que lhe contem o que existiu antes de tudo, dos deuses, dos astros, do céu, da terra, etc. «Em primeiro lugar — diz Hesíodo — existiu, realmente, o Caos». Seguiu-se-lhe Gaia, «a de amplos seios», e «do Caos nascerem Erebo e a negra Noite». Como «fruto dos amores destes dois, nasceram Éter e Hemera [Dia]». — Portanto a Noite é anterior ao Dia, ou seja: as trevas antecederam a luz, ou ainda: a LUZ saiu das trevas.

Os Órficos tinham uma Cosmologia idêntica: tudo começara nas trevas, fosse a Noite, fosse o Tártaro — terrível, negra e profundíssima região que fica tão distante do Hades como o Hades fica do Céu.

O Caos, portanto, é a profundidade total, o abismo, o Informe primordial, anterior à Criação, quando um certo tipo de «ordem» ainda não havia sido imposta aos elementos do mundo. O Caos, portanto, seria o equivalente a um estado de entropia zero. (Como sabemos, à medida que o Universo avança no tempo, a entropia aumenta, ou seja, há cada vez menos energia disponível para se converter em trabalho mecânico).

Até que ponto podemos identificar a Criação com a «explosão» inicial, ou a Singularidade do momento inicial, como uma descarga de energia concentrada, é um assunto que tem provocado diversas posturas e concomitantes discussões físico-filosóficas. Trata-se duma relação ordem-desordem, e vice-versa.

Segundo o Génesis, e com imagens alegóricas que os estudiosos dizem ter sido extraídas da mitologia babilónica, Deus criou o mundo a partir do caos, da escuridão, do abismo: os dois primeiros versículos bíblicos dizem que Deus criou o céu e a terra, e que a terra era um vazio informe — o tohu vabohu do texto hebraico.

No Livro da Sabedoria, livro bíblico que a tradição hebraica rejeita mas que a tradição católica considera como canónico, lê-se que a mão todo-poderosa de Deus «criou o mundo a partir de matéria informe» (Sabedoria 11, 17).

Fora do mundo hebraico, a ideia de não-criação existia quer no pensamento grego, como o vemos por exemplo expresso em Epicuro (sécs. iv-iii a. C.), quer também, mas mais tarde, entre os Romanos, por exemplo na filosofia poética de Lucrécio (séc. i a. C.). Estes e outros autores deram origem ao aforismo ex nihilo nihil fit («do nada, nada se faz») que resume a referida posição e foi tirado do poeta latino estóico Pérsio (séc. i d. C.), de um verso das suas Sátiras (III, 24), e significa que nada foi criado, pois tudo o que existe, existe desde sempre, desde toda a eternidade (parece a teoria do «estado estacionário», de Fred Hoyle!)

Talvez devida a essa influência grega, a única alusão bíblica a uma criação ex nihilo encontra-se num livro escrito por volta do séc. ii a. C., o 2.º livro dos Macabeus, numa frase que a mãe dos sete heróis Macabeus profere para animar os filhos, martirizados pelo tirano Antíoco IV: «Imploro-te, meu filho, olha para a terra e para o céu e tudo o que há neles, e de como Deus os fez a partir do nada, e de como os humanos vieram à existência da mesma maneira» (2 Macabeus 7, 28).

A ideia cristã de que Deus teria realmente criado o mundo a partir «de nada» — a famosa creatio ex nihilo —, contrariando o que diz o Génesis e o livro da Sabedoria, estabeleceu-se e progrediu sobretudo no século ii d. C., e surgiu de uma mescla de várias formulações filosóficas. Dois dos promulgadores dessa ideia, que mais preponderância tiveram na respectiva divulgação, foram, por um lado o gnóstico Basilides, e por outro o apologeta Justino Mártir, ambos do século ii.

Na sequência, e prosseguindo na negação da ideia dum Caos primordial donde foi criado o Cosmos (antiga ideia bíblica e — já veremos — também Rosacruciana), Santo Agostinho (354-430) aceitou e teorizou a doutrina da creatio ex nihilo, e fê-lo, curiosamente, para combater as concepções do Neoplatonismo — segundo as quais o mundo, no seu próprio Ser, é contínuo com a Realidade última e Divina, o Uno, e que do Uno emanam graus descendentes, sucessivos e cada vez mais atenuados de Ser, constituindo os diversos níveis do Universo.

Agostinho, a fim de desmontar esta concepção emanatista, sustentou que o Universo é um reino criado, trazido por Deus à existência a partir de nada (ex nihilo). Ele defende esta ideia nomeadamente no seu livro De natura boni, onde tenta demonstrar que o mal é a privação do bem, todas as coisas criadas por Deus são boas por essência, e que o nihil do qual Deus criou o Cosmos não é qualquer espécie de matéria ou caos preexistente, mas que a expressão ex nihilo, «do nada», significa apenas «não de algo».

Esta ideia do «out of nothing» encontramo-la, curiosamente, em certas cosmologias actuais, como as que são perfilhadas por dois cientistas agnósticos de Oxford, Peter Atkins e Richard Dawkins.

Este último, que é um excelente vulgarizador científico, «demonstra» nos seus muito citados livros The Selfish Gene (1976) e The Blind Watchmaker (1987), que a existência dum intelligent designer para a Criação e evolução do universo é uma falsidade: admitir que existe uma divindade como causa inicial da evolução é uma falácia porque faz depender o nosso nível de complexidade duma complexidade ainda mais complexa e que não pode ser explicada — claro, não pode ser explicada em termos de ciência materialista e positivista… Por sua vez o Prof. Peter Atkins, no seu livro Creation Revisited (1994), afirma que «a Singularidade do big bang, que os cientistas geralmente acreditam ter marcado o início do nosso Universo, pode ter emergido espontaneamente ‘out of nothingness’».

A ciência propõe-nos diferentes teorias cosmológicas, como por exemplo a do cientista Andrej Linde, que é a da da inflação caótica, com muitos universos dentro uns dos outros; a de Stephen Hawking, uma Cosmologia quântica intemporal, que não necessita dum estado inicial, ou seja, um universo sem fronteiras; a de Roger Penrose, que é assimétrica relativamente ao tempo, assimetria essa que ele considera inerente à própria natureza do tempo no Universo… etc.

Seja como for, qualquer das teorias científicas concorda que inicialmente as partículas de energia resultantes do «arranque» eram praticamente fotões — Luz! O que parece concordar com o Génesis bíblico… antes de ter criado as «fontes de luz», ou seja, o Sol, a Lua e as estrelas, a Divindade Criadora pronunciou uma palavra — logo no «primeiro dia»! — e a luz surgiu. O Sol, a Lua e as estrelas só foram criados no «quarto dia». A ciência agnóstica, porém, não pode admitir um Criador do Universo devido às armadilhas «exotéricas» em que essa posição se enreda: com efeito, levando o raciocónio ao extremo lógico, os cientistas positivistas ou neo-positivistas não têm outro remédio senão contrapor a inevitável pergunta: — E quem criou o Criador? A esta questão a Bíblia dá uma curiosa resposta. Se articularmos a primeira epístola de João: «Deus é luz» (1 João 1, 5), com o primeiro capítulo do Génesis: «Deus disse: faça-se a luz, e a luz fez-se» (Genesis 1, 3), concluiremos, matematicamente, que Deus se fez a Si mesmo, ou seja, Deus é AQUILO que permite a auto-irrupção de Singularidades — entre as quais o big bang !

Apesar do que comecei por dizer há pouco sobre o que é uma «ciência oculta», na verdade a concepção cosmológica do Universo, dentro da Philo-Sophia Rosacruz, não é tanto «científica» no sentido popperiano do termo, ou no sentido hard como hoje se costuma dizer, mas sobretudo «Theo-Lógica», no sentido lato.

Aliás a concepção cosmológica rosacruciana aproxima-se, de certo modo, da moderna Teologia do Processo, defendida por filósofos e teólogos como A. N. Whitehead, J. B. Cobb, D. R. Griffin, Ch. Hartshorne, etc. que criaram e divulgaram o termo Process Theology. Esta teologia perfilha a doutrina do panenteísmo [gr. pan + en + theos], caminho intermédio entre a negação da liberdade individual e da criatividade (que caracteriza muitas das variedades do panteísmo, como por exemplo o de Heraclito, Anaxágoras, Platão, Plotino, ou das religiões orientais como o Hinduísmo e o Budismo) e o remoto distanciamento do divino (que caracteriza o teísmo clássico, como o das Igrejas ocidentais institucionalizadas, a Católica romana, as denominações protestantes e as Ortodoxas grega e russa).

O panenteísmo começou a ter uma elaboração sistemática no séc. xix com Fichte, Schelling e Hegel, e sobretudo no séc. xx com a «Filosofia do Processo» do filósofo e matemático inglês Alfred N. Whitehead (1861-1947). O «teólogo do processo» Charles Hartshorne (A Natural Theology For Our Time, Open Court, La Salle 1967) fez uma análise teológica completa do panenteísmo, baseado na analogia de um organismo (Deus) que compreende células individuais e semi-autónomas (todos os constituintes conhecidos e desconhecidos da realidade). Uma boa descrição deste sistema encontra-se em John B. Cobb & David R. Griffin (Process Theology: An Introductory Exposition, Westminster Press, Philadelphia 1976).

Segundo esta óptica, o problema do mal, de difícil solução no teísmo clássico, é ultrapassado uma vez que Deus e o ser humano evoluem em inter-acção, sendo o mal apenas uma fase de carência transitória: «Sereis, pois, perfeitos, como o vosso Pai celestial é perfeito» (Mateus 5, 48). Recomendo a consulta do estudo de Marjorie Suchoki The End of Evil: Process Eschatology in Historical Context (Suny Press, Albany 1988).

Com vimos, a perspectiva pan-en-teísta que os filósofos e teólogos «do Processo» defendem constitui uma posição intermédia entre teísmo — Deus transcendente ao mundo — e panteísmo — Deus totalmente imanente ao mundo. Deus e o mundo cooperam: Deus atrai o mundo para a novidade e para uma maior complexidade, harmonia e ordem, ao mesmo tempo que é influenciado por experiências com o mundo. Há liberdade em todas as entidades: Deus tenta persuadir mas não obriga.

Ou seja, a Teologia do Processo rejeita a creatio ex nihilo e defende que a acção de Deus no mundo não se exerce por intervenções pontuais, mais ou menos miraculosas, mas opera como creatio continua, como actividade perene que sustenta a criatura sem cessar, promovendo-a continuamente. Assim, a transcendência divina não é um remoto distanciamento, mas antes uma presença íntima, fundante e sempre activa, que inclui o «todo» em si mesma sem o absorver nem se deixar absorver por ele.

Esta ideia de «um Deus que evolui» é uma ideia comum a diversas correntes esotéricas, ao mesmo tempo que se adapta perfeitamente à ideia de um Deus pedagogo, que vai exercendo «catequese» nos sucessivos estágios da evolução humana, revelando os mistérios à medida que o ser humano vai sendo capaz de os apreender.

Encontramos uma interessante formulação desta ideia num dos três sonetos iniciáticos que Fernando Pessoa dedicou a «Christian Rosenkreuz»:

… Deus é o Homem de outro Deus maior;

Adão Supremo, também teve Queda;

também, como foi nosso Criador,

foi criado, e a Verdade lhe morreu…

De além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda;

aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

… Deus é o Homem de outro Deus maior;

Adão Supremo, também teve Queda;

também, como foi nosso Criador,

foi criado, e a Verdade lhe morreu…

De além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda;

aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

 

Segundo o teólogo galego Andrés Torres Queiruga a Teologia do Processo caracterizar-se-ia do seguinte modo:

« … a acção de Deus não se reduz a um mero impulso inicial que cessa uma vez realizado e que, quando muito, reaparece em intervenções pontuais [“intervencionismo teológico”]. Pelo contrário, a sua acção opera como creatio continua, como actividade perene que sustenta a criatura sem cessar e continuamente a promove. É nesta direcção que se orienta a Teologia do Processo, de grande vitalidade no actual pensamento anglo-saxónico. Trata-se duma visão panenteísta (tudo em Deus), segundo a qual a transcendência divina não consiste num apartamento/separação do mundo, mas numa presença íntima, fundante e sempre activa, presença essa que inclui tudo em si mesma sem absorver esse tudo nem se deixar absorver por ele» (Fin del Cristianismo Premoderno, Editorial Sal Terrae, Santander 2000, pp. 206-207).

Ou seja, há liberdade em todas as entidades: Deus influencia e tenta persuadir (daí a Revelação), mas Deus não coage (tal como os Mestres Rosacruzes não coagem: ensinam o discípulo a julgar-se a si mesmo e dão-lhe total liberdade e correlata responsabilidade). A Teologia do Processo rejeita a creatio ex nihilo, e, pelo contrário, afirma uma doutrina de criação a partir do caos (Cobb & Griffin 1976, 65).

 

 

O fundador de The Rosicrucian Fellowship, Max Heindel (1865-1919), iniciado rosacruciano que afirma ter estado em contacto directo com os Fratres Seniores (Irmãos Maiores) da misteriosa Ordem Rosacruz, e ter recebido deles as suas Iniciações, praticamente não usa as palavras Cosmogonia ou Cosmologia excepto uma vez, cada uma delas, a propósito do «mito da criação» nos textos islandeses da Edda (Ancient and Modern Initiation, The Rosicrucian Fellowship, Oceanside 1931, p. 79). Em contrapartida prefere Cosmogénese, que contrapõe a Antropogénese, na sua obra fundamental, The Rosicrucian Cosmo-Conception, de 1909.

Max Heindel (1865 -1919)  . Picture by  Frater Velado  From Frater Velado Art Gallery

Neste seu livro, Heindel elucida-nos alguns pontos interessantes desta Cosmogénese. Por exemplo, sobre o Caos:

«O Caos não é um estado que, tendo existido no passado, tenha desaparecido completamente. Continua à nossa volta, mesmo agora. Não poderia haver progresso se as formas velhas, que já prestaram toda a sua utilidade, não se dissolvessem constantemente no Caos, e se este não desse origem, também continuamente, a novas formas. A obra da evolução cessaria e a estagnação impediria toda a possibilidade de desenvolvimento» (The Rosicrucian Cosmo-Conception, The Rosicrucian Fellowship, reed. Oceanside 1977, p. 249).

Noutro lugar do mesmo livro esclarece a impossibilidade de um vazio absoluto, mesmo primordial:

«Para os Rosacruzes, tal como para qualquer outra escola de ocultismo, não existe nada semelhante ao vácuo ou “vazio de espaço”. Para eles o espaço é Espírito em forma atenuada, ao passo que a matéria é espaço ou Espírito cristalizado. A manifestação do Espírito é dual: o que vemos como Forma é a manifestação negativa ou pólo negativo do Espírito, cristalizado e inerte. O pólo positivo do Espírito manifesta-se como Vida, que galvaniza a Forma negativa e a leva à acção; porém, tanto a Vida como a Forma têm a sua origem no Espírito, no Espaço, no Caos!» (ibidem, pp. 247-248).

De acordo com a Cosmogénese rosacruciana há que distinguir entre o SER SUPREMO e o Ser a que as religiões chamam DEUS, numa visão majestosa e amplíssima evidenciada na citação de Fernando Pessoa que vimos atrás:

Deus é o Homem doutro Deus maior:

Adão Supremo, também teve Queda;

Também como foi nosso Criador,

Foi criado e a Verdade lhe morreu…

Os respectivos atributos assim se repartem triunitariamente, em correlação «vertical»:

 

 

SER SUPREMO:

• PODER (Pai)

• VERBO (Filho)

• MOVIMENTO (Espírito Santo)

DEUS:

Vontade (¯ Pai)

Sabedoria | Amor (¯ Filho)

Actividade (¯ Espírito Santo)

 

O 1.º aspecto do Ser Supremo concebe ou imagina o Universo antes do começo da Manifestação activa, incluindo os bilhões de mundos e sistemas e as grandes Hierarquias que habitam nos Seis Planos Cósmicos de existência.

O 2.º aspecto manifesta-se como força de atracção e coesão (que dá origem ao Amor de DEUS), é o Verbo Criador — Palavra criativa —, e modela a Substância-Raiz cósmica, tal como os sons modelam formas. (Os cientistas chamam-lhe substância cósmica primordial, de temperatura elevadíssima nas primeiras fracções de segundo após o big bang).

Entretanto, o 3.º aspecto (Movimento) já havia despertado a Substância-Raiz do seu estado natural de inércia (a «ordem» caótica, ou estado «de simplicidade e equilíbrio» como dizem os cientistas) a fim de a dotar de todos os graus diferentes de vibração que vão permitir que o Verbo os modele.

Essa Substância-Raiz é uma expressão do pólo negativo do Espírito Universal Absoluto, ao passo que a expressão da energia positiva é o Grande Ser Criador a quem chamamos Deus, e de quem fazemos parte: «Nele vivemos, nos movemos e somos» (Actos 17, 28).

Toda a matéria que conhecemos resulta da acção mútua desses dois pólos, e é espaço cristalizado, emanado do pólo negativo dessa Substância Espiritual Primordial.

A palavra hebraica elohim, que as Bíblias correntes traduzem por «Deus», na verdade é um plural, «deuses», e nessa forma plural aparece mais de 2.000 vezes na Bíblia hebraica, a começar pelo primeiro capítulo do Génesis: «No princípio Elohim criou o céu e a terra» (Génesis 1, 1). A forma singular, eloah, também se encontra no Antigo Testamento: só no livro de Job, por exemplo, aparece cerca de 40 vezes. Excluída a frágil explicação do plural majestático, que de facto em hebraico não existe, e reconhecendo que a Bíblia hebraica enfatiza a unicidade de Deus (“shema Yisra’el, Adonay elohênu, Adonay ekhad”: «Escuta, Israel, Jahvé é o nosso Deus, Jahvé é um só» — Deuteronómio 6, 4), as doutrinas Rosacruzes ensinam-nos que os Elohim correspondem às Seis Hierarquias Criadoras que trabalharam na nossa evolução a fim de trazerem o homem até ao ponto de adquirir uma forma física por meio da qual o Espírito interno pudesse funcionar (Heindel 1977, 325-326).

Na verdade Jahvé é o chefe dessas Hierarquias, e não exactamente o Ser Supremo com que redactores tardios o confundiram. Não podemos esquecer que a maior parte dos livros do Antigo Testamento bíblico, tais como os conhecemos hoje, resultaram de uma tradição oral que vem de longínquos ancestrais e que foi por fim passada a escrito por sucessivas gerações de descendentes, com as deformações, «correcções» e reformulações inevitáveis.

Uma prova de que Jahvé é um Superior, ou um Chefe pouco acessível, e que os humanos tinham um contacto mais imediato — eventualmente mais amigável — com os Elohim, encontramo-lo na seguinte situação relatada no Génesis: Jacob empreendeu uma longa viagem até Haran, para arranjar esposa, e fez o seguinte voto: «Se eu regressar em paz [a salvo] a casa do meu pai, Jahvé será para mim como os Elohim» (Génesis 28, 21). Isto parece significar que se as coisas lhe correrem bem, ele verá no distante «chefe» Jahvé um ser tão fraterno e convivial como os Elohim, pois a forma como a frase está construída não deixa dúvidas de que se está a referir a entidades distintas.

Finalmente — mas não por último! — o Divino Plano evolutivo realiza-se em sete Grandes Períodos de Manifestação, que têm as suas correspondências ritualísticas nos dias da semana:

 

1 - Período de Saturno

 

Sábado (Dia de Saturno)

2 - Período Solar

 

Domingo (Dia do Sol)

3 - Período Lunar

 

Segunda (Dia da Lua)

4 - Período Terrestre

(a) Metade Marciana

Terça (Dia de Marte)

 

(b) Metade Mercurial

Quarta (Dia de Mercúrio)

5 - Período de Júpiter

 

Quinta (Dia de Júpiter)

6 - Período de Vénus

 

Sexta (Dia de Vénus)

7 - Período de Vulcano

 

?

 

Actualmente, encontramo-nos no início da Metade Mercurial do Período Terrestre.

Esclareça-se que aquelas designaçãoes não se referem aos astros que conhecemos, Saturno, Lua, Sol etc., mas são designações ocultistas de estados diferentes e evolutivos do nosso globo terrestre, ao longo de tempos inimagináveis, com a duração de biliões e biliões de anos, cuja correspondência macrocrónica se reflecte, microcronicamente, no mistério dos sete dias da semana.

É caso para se dizer: o Ser Supremo, ou Deus Altíssimo, ou o Absoluto, ou a Grande Inteligência Cósmica… é algo que transcende de tal modo a nossa relativíssima pequenez que não temos imaginação e muito menos palavras que nos dêem uma imagem sequer aproximada de tão maravilhosa vastidão.

Vastidão que não é apenas um incompreensível vazio, mas um infinito RESERVATÓRIO DE AMOR.

Assim sendo, por aqui me fico e mais não digo porque mais não sei.

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional A Criação, promovido pelo Instituto São Tomás de Aquino (ISTA)  em Abril de 2001, Lisboa

 

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