António Monteiro

 

A “RESSURREIÇÃO” DE LÁZARO,

SEGUNDO JOÃO

(Jo 11, 1- 44)

A "ressurreição" de Lázaro, Gustave Doré (1832-1883)

 

INTRODUÇÃO

 

            De acordo com os evangelhos canónicos e alguns apócrifos, Cristo realizou numerosos “milagres”, principalmente curas, mas os mais notáveis foram os das “ressurreições”; porém, enquanto os apócrifos narram um número considerável de “milagres” desta natureza, como o Evangelho de Nicodemus, o Evangelho do Pseudo-Tomé e outros, os canónicos apenas dão fé de dois: o da filha de Jairo e o de Lázaro; o primeiro é narrado pelos três sinópticos  (Mt 9, 18-26, Mc 5, 22-23, 35-42 e Lc 8, 49-56)  e o segundo por Lucas (7, 11-17) e por João (11, 1-44).

Lucas não cita o nome de Lázaro, limitando-se a dizer  que Cristo, ao dirigir-se a Nain[1] com os seus Discípulos e uma grande multidão, se deparou com um cortejo que levava um defunto a sepultar, filho único de sua mãe que era viúva, e a acompanhá-la vinha muita gente;  Jesus compadeceu-se (...) tocou no caixão (...) e disse: ‘Jovem, Eu to digo: Levanta-te’. O morto sentou-se e começou a falar. E Jesus entregou-o à sua mãe. Este  “milagre” da “ressurreição” do filho da viuva de Nain, como é vulgarmente designado,  é o mesmo do de Lázaro, como, aliás, nos diz Max Heindel[2]; de facto,

            Este “milagre” foi também contado por Marcos, mas no seu Evangelho Secreto, referido por Clemente de Alexandria (sec. II) numa carta, da qual uma cópia, feita no século XVIII, foi descoberta em 1958 por Morton Smith, teólogo da Universidade de Colômbia, EUA, no mosteiro de Mar Saba, a sul de Jerusalém; infelizmente apenas dois fragmentos constam dessa carta, um dos quais, o mais extenso, conta o milagre da “ressurreição” do jovem de Betânia que tudo indica ser Lázaro[5].

Dado o seu âmbito cósmico e riqueza simbólica, é o relato da “ressurreição” desta personagem, feito por João no seu evangelho canónico, que me proponho interpretar à luz dos Ensinamentos Rosacruzes, para o que me socorri, naturalmente, de Max Heindel e Rudolf Steiner, entre outros. Mas estes dois autores apenas nos deram a sua interpretação da simbologia essencial do “milagre”, desprezando, ou tratando superficialmente, muitos pormenores que encerram símbolos, alguns de extraordinária riqueza; assim, achei por bem fazer a análise interpretativa do relato completo deste sinal do céu, como João prefere designar os “milagres”.

Antes, porém, e  para esclarecer o porquê de algumas das leituras da minha lavra, devo fazer umas breves referências a João e a algumas passagens do seu evangelho.

 

JOÃO

 

            O mais antigo testemunho de que o autor do quarto evangelho é o Apóstolo João remonta aos finais do século I, princípios do II, e foi prestado por um dos seus discípulos em Éfeso, de nome Policarpo (69 d.C. - 155), que o evangelista ordenou bispo de Esmirna e cujo martírio na fogueira assinala o fim da Era Subapostólica na Ásia.

Policarpo contou a vida de João a Santo Irineu (c. 140-202), bispo de Lion, o qual escreveu  em Adversus Haereses, III, i, 1 (180) o seguinte:  Depois (isto é, a seguir a Mateus, Marcos e Lucas) João, o discípulo do Senhor que repousou sobre o peito d’Ele, publicou, por sua vez, um Evangelho enquanto morava em Éfeso, na Ásia”, onde viveu - acrescentou Santo Irineu - no tempo do imperador Trajano (98-117) e faleceu em 102, com uma idade muito avançada, pelo que era cognominado o “Ancião”. Este testemunho tinha já sido avançado por Justino Mártir (c. 100-c. 163), ao afirmar, na sua apologia Diálogo com o Judeu Trifon, cap. 81, que o autor do quarto evangelho fora João, um dos Apóstolos de Cristo, que viveu em Éfeso.

            Porém, logo na época surgiram opiniões divergentes, principalmente por parte dos Montanistas, que atribuíram a autoria deste evangelho a Cerinto, um herege montanista, gnóstico e ebionita[6]. Mas a partir do século III vingou a ideia inicial favorável ao Apóstolo João, até que em 1820, na Alemanha, Bretschneider levantou a chamada Questão Joanina, segundo a qual o autor teria sido um outro João, o Presbítero, e  não o Apóstolo[7].

Acontece, porém, que a minha intuição “divinatória” me leva a preferir o testemunho de São Policarpo, intuição esta que me leva a admitir que o penúltimo versículo deste evangelho, É esse o discípulo que dá testemunho destas coisas e as escreveu; e nós sabemos que o seu testemunho é verdadeiro (21, 24), haja sido acrescentado por um copista e, a seguir por outros, todos animados com a louvável finalidade de garantir a veracidade de tudo quanto esse discípulo dera testemunho.

 

* * *

           

João nasceu em Betsaída, filho de Zebedeu e Salomé, e irmão de outro apóstolo, Tiago Maior, tendo o zelo de ambos merecido o nome que Cristo lhes deu, Boanerges, isto é, Filhos do Trovão (Mc 3, 17). Tal como os seus familiares era pescador, e fazia parte do círculo de João Baptista quando do chamamento de Cristo; nunca casou e era virgem[8], o que significa, simbolicamente, que satisfez os preceitos iniciáticos da Igreja de Éfeso a que ele próprio se iria referir no Apocalipse (2, 1-7). 

            João atingiu uma posição cimeira no corpo apostólico: com Pedro e Tiago, seu irmão, foi testemunha ocular de alguns eventos da maior importância, como a “ressurreição” da filha de Jairo, a Transfiguração (Mt 17,1) e a agonia em Getsemani (Mt 26, 37); na Última Ceia ficou à direita de Cristo, como nos mostra Leonardo Da Vinci, e inclinou-se sobre o seu peito (Jo 13, 25); foi o único discípulo que assistiu à crucificação e o escolhido por Jesus para cuidar de sua mãe (Jo 19, 25-27); foi o primeiro a crer na ressurreição de Cristo e a reconhece-lo quando apareceu  no lago de Genesaré, no corpo vital de Jesus.

Depois da Ascensão e da vinda do Espírito Santo, João, juntamente com Pedro, desempenhou um papel proeminente na criação e orientação da Igreja: vemo-los na cura do coxo no Templo (Ac 3, 1-11), na prisão (Ac 4, 3), na visita aos convertidos da Samaria (Ac 8, 14), etc.  

            João manteve-se na Palestina cerca de doze anos até que a perseguição de Herodes Agripa I (10 a.C.- 44 d.C.), que levou muitos discípulos à morte, como seu  irmão Tiago (Ac 12, 1-17), o obrigou a procurar refúgio na Ásia Menor,  tendo-se fixado em Éfeso, juntamente com a Virgem Maria [9].

            Cerca do ano 51, João foi a Jerusalém participar no Concílio Apostólico, mas pouco depois regressou a Éfeso, onde criou um círculo a partir do qual passou a dirigir as igrejas daquela província, círculo esse que tudo indica ter sido, na realidade, a primeira escola cristã da Moderna Iniciação. De facto, e citando Elsa Glover [10], o Apocalipse, ou Revelação, é uma obra onde João descreve, em termos simbólicos, a via da Iniciação e aquilo que o iniciado pode investigar nos mundos subtis. A Igreja de Éfeso é o destino da primeira das cartas dirigidas às Sete Igrejas, isto é, os sete passos iniciáticos, embora a sua ordem não corresponda, necessariamente, àquela pela qual as igrejas são apresentadas. A Igreja de Éfeso representa a consagração da força criadora a propósitos espirituais em detrimento dos passionais; o aspirante é convidado a recordar aquilo em que haja falhado, a arrepender-se e a prosseguir o seu trabalho inicial (Ap 2, 5); aquele que vencer fica autorizado a comer da Árvore da Vida (Ap 2, 7), símbolo do poder que lhe possibilitará uma vida terrena tão longa quanto desejar; é o poder da cura, por isso o de manter indefinidamente o corpo físico. Assim, aquele que conseguir regenerar o uso da força criadora conquistará o poder da cura.

Em De Præscriptione Hæreticorum, XXXVI, Tertuliano (c. 160-c. 220) [11]  diz que João foi preso e levado para Roma, onde, defronte da Porta Latina, foi metido num caldeirão de óleo a ferver, do qual, porém, saiu ileso. Então, por ordem do imperador Domiciano (81 a 96), foi desterrado para Patmos, onde, no ano de 95, terá escrito o Apocalipse. Há uma velha tradição, baseada em Viagens e milagres do Santo Apóstolo e Evangelista João Teólogo, relatados pelo seu discípulo Prócoros, um apócrifo do século V, segundo a qual foi numa gruta desta ilha grega que João, depois de ter ouvido “detrás de [si] uma grande voz, como de trombeta” (Ap 1, 10), escreveu o Apocalipse. A gruta foi, mais tarde, adaptada a igreja e incorporada no Mosteiro do Apocalipse. Uma nota curiosa: numa das paredes dessa gruta há uma fenda natural onde se diz que João apoiava uma das mãos enquanto escrevia, e vinda da qual ainda hoje se ouve,  por vezes, a mesma grande voz .

Após a morte de Domiciano em 98, João regressou a Éfeso, onde escreveu o evangelho e as três epístolas canónicas, enquanto prosseguia a direcção do seu círculo cristão, ou moderna escola iniciática; será curioso referir que  o mais antigo manuscrito do Novo Testamento que se conhece é um pedaço de papiro do tamanho de uma mão, designado  P52, ou fragmento de John Rylands, cuja datação o situa entre os anos 100 e 125, e onde constam partes de versículos que muito provavelmente  pertencem a este evangelho.

João faleceu em Éfeso no ano 102 com uma idade muito  avançada.

 

* * *

 

João escreveu em grego vulgar, com influência semítica, e os seus textos mostram que  conhecia, perfeitamente, a Palestina do tempo de Jesus e que foi testemunha ocular do ministério de Cristo.

João era um essénio; é o que indiciam expressões como luz-trevas, caminhar nas trevas, testemunhos da verdade, espírito da verdade e iniquidade, Príncipe deste mundo, filhos das trevas, filhos da luz, etc., que  nos remetem para o estilo literário dos manuscritos de Qumran; é o que se depreende do facto de usar o calendário solar dos Essénios para situar a Última Ceia no dia anterior ao da Páscoa, ao invés dos sinópticos que a situam na Páscoa, em conformidade com o calendário lunar judaico[12]; é o que se depreende, igualmente, do seu Apocalipse, cujo estilo é claramente essénico.

João é hoje venerado como patrono da Ásia Menor e o seu dia festivo é 27 de Dezembro; em arte é representado por diversos emblemas, principalmente por uma águia, símbolo da sua posição como evangelista e iniciado.

 

O QUARTO EVANGELHO

 

A nossa tendência materializante, bem própria, aliás, do momento evolutivo que atravessamos,  leva-nos a olhar para os evangelhos como se fossem biografias de um ser divino, chamado Jesus Cristo, porém eivadas de fantasias e até contradições, principalmente entre os sinópticos e o quarto evangelho; no entanto, se lermos essas biografias numa perspectiva espiritualista não será difícil descortinarmos ensinamentos esotéricos de grande valor que transmutam as fantasias e contradições em características próprias de diferentes Escolas de Mistérios.

Com efeito, todos os evangelhos canónicos são fórmulas de iniciação que os autores dissimularam sob uma capa de símbolos, alguns mesclados com factos relevantes do ministério de Cristo e da vida de Jesus, fórmulas essas seguidas por três Escolas de Mistérios Menores com as quais estão relacionados os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, e uma de Mistérios Maiores, à qual pertence o evangelho de João[13]. Daí o paralelismo e semelhança dos relatos dos três primeiros e as diferenças, por vezes gritantes, do quarto evangelho, que fazem deste texto neotestamentário aquele que:

§         maior ênfase põe na divindade de Cristo; daí o relato do baptismo de Jesus e as palavras de João, o Baptista;

§         mais evidencia o poder divino: a cura do filho do funcionário real processou-se à distância (4, 46-51); o paralítico da piscina de Betsaída, era-o havia trinta e oito anos (5, 5-9); o cego de Jerusalém era invisual de nascença (9, 1-7), etc.

§         menos se debruça sobre o aspecto humano de Jesus; daí a ausência de referências genealógicas e o silêncio acerca do seu nascimento;

§         é o único onde a instituição da Eucaristia não é citada, não sendo aceitável que a “multiplicação dos pães”, ou o lava-pés da Última Ceia sejam uma alusão, ou o equivalente, a esse sacramento, como alguns pretendem;

§         é, também, o único onde não há parábolas, pois trata-se de um texto destinado a iniciados e não ao povo comum.

Mas as diferenças mais profundas residem no Prólogo e no tema do Paracleto.

 

O Prólogo

 

Recordemos os cinco primeiros versículos:

 

1 No princípio era o Verbo [14], e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus,

2 Ele estava no princípio com Deus,

3 Tudo começou a existir por meio d’Ele, e sem Ele nada foi criado,

4 N’Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens,

5 A luz resplandece nas trevas mas as trevas não a dominaram

Penso que, com estas palavras, João pretendeu, por um lado, definir o âmbito cósmico e a intemporalidade do trabalho de Cristo; por outro, realçar a sua analogia com o Verbo, o Segundo Aspecto como se manifesta o Ser Supremo. Digo analogia porque, na verdade, Cristo não é o Verbo, o que vai frontalmente contra a doutrina oficial da Igreja mas ao encontro do que afirma Max Heindel[16]. De facto, no versículo 14 do Prólogo João diz:

14 E o Verbo fez-se homem e habitou entre nós, e nós vimos a Sua glória, glória que Lhe vem do Pai como Filho único cheio de graça e verdade.

            Ora este versículo – como infelizmente tantos outros – encontra-se viciado por dois erros de tradução, piedosamente propositados, admito eu.

            O que em grego está escrito na primeira oração é kai o logoV sarx egeneto  (kai o logos sarks egueneto), cuja tradução não é propriamente a transcrita, mas sim E a Palavra foi matéria, uma vez que a palavra σαρξ (sarks), que tem sido traduzida como homem, significa matéria, e apenas em sentido figurado se poderá traduzir como homem, ou carne, conforme também se vê em algumas versões em português, mas sempre em oposição a espírito; daí que, na nossa língua,  matéria me pareça o termo mais adequado.

            Outro erro é a tradução de μονογενους  (monoguenous) como Filho único; esta palavra significa uma só origem, no sentido de gerado por um só ser, o que, em boa verdade, corresponde muito melhor à imagem do Ser Supremo a emanar  o Verbo, ou a Palavra, do que a gerar um filho único.

            Mas há mais indícios de que Cristo não é o Verbo.             O autor, ao afirmar que o Verbo era a luz verdadeira (v. 9), e que João, o Baptista veio para dar testemunho da luz (v. 8) - não da luz verdadeira - e deu testemunho d’Ele (v. 15), leva-nos à conclusão de que  sendo Ele o Cristo, o Cristo é a luz, mas não a luz verdadeira,  e como o Verbo era a luz verdadeira (v. 9), o Cristo não era o Verbo.

O Prólogo integra, ainda, determinados versículos que nos levam a uma outra conclusão, cujo perfeito entendimento permite desfazer algumas confusões teológicas.

Recordemos Max Heindel para, em primeiro lugar, considerarmos o Absoluto, o Ser Ilimitado, Raiz Cósmica de toda a existência, o qual, na fase de Não-Manifestação, está totalmente fora das capacidades de compreensão humana; na fase de Manifestação torna-se algo perceptível porque faz proceder de Si o Ser Supremo, o Um - que João designa como Deus - o qual se manifesta  segundo três Aspectos: Poder, Verbo e Movimento.

Deste Ser Supremo procedem os Sete Grandes Logos que contêm em si as Grandes Hierarquias, as quais se vão diferenciando ao longo dos planos cósmicos; no sétimo e último encontra-se o Deus do nosso Sistema Solar, o qual se  manifesta segundo três Aspectos: Vontade, Sabedoria e Actividade. 

            Conforme a Lei Cósmica da Analogia, há uma correlação entre os aspectos do Ser Supremo e do Deus do nosso Sistema Solar: quando o Deus do nosso Sistema Solar se manifesta como Vontade, age de forma análoga à do Ser Supremo quando se manifesta como Poder, o mesmo se passando com os demais aspectos divinos.

            Mas esta correlação abrange, penso eu, os aspectos mais característicos como se manifestam, nos seus níveis, os mais elevados iniciados de cada Período de Evolução; assim sendo,

§         o Pai age de forma análoga à do Deus do nosso Sistema Solar quando se manifesta como Vontade, e à do Ser Supremo quando se manifesta como Poder;

§       o Filho, ou Cristo, age de forma análoga à do Deus do nosso Sistema Solar quando se manifesta como Sabedoria, e à do Ser Supremo quando se manifesta como Verbo;

§        Jeová age de forma análoga à do Deus do nosso Sistema Solar quando se manifesta como Actividade, e à do Ser Supremo quando se manifesta como Movimento.

            João passa por cima da correlação Cristo - Sabedoria do Deus do nosso Sistema Solar e vai directo ao Verbo, a Luz Verdadeira, para significar, penso eu, que Cristo, a Luz de que João Baptista deu testemunho, não é o Verbo mas que agiu, e continua a agir, de forma análoga ao Aspecto Verbo do Ser Supremo.

            O Paracleto

            O Paracleto é um tema que merece uma atenção muito especial, não tanto por ser João o único autor neotestamentário a tratá-lo, como por estar, em minha opinião, directa e intimamente relacionado com os  Rosacruzes.

Paracleto é um termo grego[17] que significa defensor, advogado, intercessor, consolador, sendo este último significado o mais comum nas versões bíblicas em português, aparecendo nas inglesas como consoler. Bem curioso é o facto de Jerónimo (século IV) ter vertido esta palavra, para latim, de duas formas diferentes: no evangelho, limitou-se a traduzir como Paracletus, mas na Primeira Epístola optou por advocatus (1 Jo 2, 1), o que prova ter entendido que se trata de um homógrafo relativo a duas entidades diferentes. Quanto a mim, parece-me que Intercessor será a tradução mais correcta de Paracleto em ambos os textos, porque penso que o conceito de intercessão exprime melhor e mais fielmente do que consolação, ou advocacia, o papel dessas duas entidades na evolução humana; no entanto, vou manter a expressão original dado que o seu uso já está consagrado.

João refere-se ao Paracleto em cinco passagens do evangelho e uma da Primeira Epístola.

No evangelho, é Cristo quem se dirige aos seus discípulos nos seguintes termos:

§         Mas o Paracleto, o Espírito Santo  que o Pai enviará em meu nome, Esse ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (Jo 14, 26). 

§         Mas, quando vier o Paracleto, que vos hei-de enviar da parte do Pai, o Espírito da  Verdade, que procede do Pai, Ele testificará de Mim” (Jo 15, 26).

§         Quando o Espírito da verdade vier guiar-vos-á para toda a verdade; porque ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e anunciar-vos-á as coisas que hão-de vir. Ele glorificar-me-á, porque há-de receber do que é meu ...” (16, 13-14).

            Na epístola, escrita muito depois da morte de Jesus, é João quem se exprime da seguinte forma:

§         Filhinhos meus, escrevo-vos estas coisas para que não pequeis; mas se alguém pecar, temos um Paracleto junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo. Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo[20] (1 Jo 2, 1-2).

Estas passagens levam-nos à conclusão de que há dois Paracletos, já que o pronome outro[21] não deixa quaisquer dúvidas: o primeiro é, sem dúvida, o próprio Cristo; quanto ao segundo apenas ficamos a saber que se trata de uma entidade já conhecida dos apóstolos mas desconhecida do mundo, que será enviada pelo Pai, para o que o Cristo terá de partir, que virá ensinar os apóstolos e guiá-los para a verdade, pois anunciar-lhes-á o que tiver ouvido e que glorificará o Cristo pois receberá do que a Cristo pertence.

Em Jo 14, 26, acima transcrito, diz-se que o Paracleto é o Espírito Santo; penso tratar-se de uma adulteração do original, provavelmente feita por um piedoso mas distraído copista que não se apercebeu da profunda diferença existente entre o Espírito Santo, a dogmática Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, ou o aspecto Actividade como se manifesta o Deus do nosso Sistema Solar, e o Paracleto, uma entidade de exaltada estatura espiritualista, mas indiscutivelmente inferior; e, de facto, em 1812 foi descoberto, no Monte Sinai, um palimpsesto onde foi possível recuperar parte do texto primitivo, uma tradução em siríaco, do século IV ou V, do Evangelho de João, onde no  versículo em causa não aparece a expressão Espírito Santo mas apenas Espírito.

Mas vejamos a que outras conclusões nos conduzem estas passagens.

O segundo Paracleto, ao transmitir aos homens a palavra de Deus, virá prosseguir o trabalho doutrinário desenvolvido pelo Cristo durante o seu ministério, pelo que actuará como se fosse seu substituto; mas o Cristo foi enviado pelo Pai  (cf. v.g. Jo 16, 5); logo, o seu substituto também terá de ser enviado pelo Pai; porém, “ninguém vem ao Pai senão por mim” (14, 6), advertiu o Cristo; assim sendo, terá de partir a fim de levar o seu substituto ao Pai e possibilitar, desta forma, a sua  vinda. Uma vez substituído, o Cristo passará, como primeiro Paracleto, a interceder junto do Pai pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo.

Quanto ao segundo Paracleto, o que antecede leva-nos à conclusão de que se trata de um ser humano e que terá de ser iniciado pelo Pai através do Cristo, a fim de poder prosseguir o seu trabalho doutrinário. Esta conclusão implica algumas perguntas: quem é esse ser humano? já veio ao mundo? ou ainda está para vir?

Considerando:

§         e que Rudolf Steiner afirmou, a propósito do profundo significado do Prólogo, que o mistério da Rosa-Cruz pode ser visto como uma continuação do Evangelho de João[23],

admito que o segundo Paracleto seja o fundador da Ordem Rosa Cruz.

            A corroborar esta minha conclusão temos a curiosa passagem do final do Evangelho de João em que Pedro perguntou ao Senhor o que seria feito daquele discípulo que Jesus amava, aquele que estivera reclinado sobre o seu peito, durante a ceia, tendo Cristo respondido Que te importa se eu quero que ele fique até que eu venha?, resposta esta que deu origem ao rumor,  entre os irmãos de que aquele discípulo não morreria (Jo 21 – 23).

 

* * *

 

Termino esta introdução com uma imagem que me sugerem os quatro evangelhos canónicos, como fórmulas de iniciação -  a do Tabernáculo no Deserto.

No átrio vejo os dois primeiros: o de Mateus no Altar de Bronze, e o de Marcos no Lavabo; no interior, os dois últimos: o de Lucas no Lugar Santo e o de João, ou Evangelho do Espírito, no dizer de Clemente de Alexandria,  no Sancto Sanctorum.

 

INTERPRETAÇÃO DO RELATO

DA “RESSURREIÇÃO” DE LÁZARO

 

Dado que tive de me apoiar em  Max Heindel e Rudolf Steiner para estudar este sinal do céu, as passagens interpretadas por estes dois autores vão devidamente identificadas para que não se confundam com as que são da minha exclusiva responsabilidade.

 

Lázaro, forma grega do antropónimo hebraico Eleazaros, que significa Deus ajudou, é um nome que aparece no Novo Testamento em três episódios, um contado por Lucas na  parábola O Homem Rico e o Pobre (Lc 16, 19-31) e dois por João,  o da “ressurreição” (Jo 11, 1-44) e o da ceia oferecida a Jesus, em Betânia, durante a qual Maria lhe ungiu os pés e os enxugou com os cabelos (Jo 12, 1-19); porém, o Lázaro citado por Lucas nada tem a ver com o protagonista dos episódios de João.

Relativamente à ceia em Betânia parece-me muito significativo o facto de Mateus e Marcos, ao referirem este episódio, não citarem nomes nem sugerirem a presença de outro homem além de Jesus (Mt 26, 6-16 e Mc 14, 3-11); por seu turno, Lucas conta apenas a visita do Senhor à casa de Marta e Maria, mas omite a unção e também não cita Lázaro (Lc 10, 38-42) [24].

Quem era, na realidade, Lázaro?

É Rudolf Steiner quem nos revela tratar-se de uma personagem fictícia que o autor do quarto evangelho criou para relatar a sua própria iniciação, utilizando a alegoria da sua “ressurreição”, iniciação essa que foi a primeira que Cristo concedeu a um ser humano para lhe transmitir a mensagem que o evangelho iria veicular[25], o que explica, por um lado, a fugaz aparição de Lázaro no corpo neotestamentário, e, por outro, o facto do nome de João, como autor, estar omisso neste evangelho.

Max Heindel dá-nos uma resposta um pouco diferente.

Segundo a lenda maçónica, o primeiro ser humano criado por Jeová foi Eva. Samael, um espírito luciferino, conheceu-a,  mas logo que engravidou abandonou-a; desta união nasceu Caim, que a lenda chama Filho da Viúva porque Eva, na realidade, ficou sem marido. Jeová criou, então, um outro ser humano, Adão, para conhecer Eva e dar origem a uma descendência de seres humanos por si criados directa ou indirectamente; assim nasceu  Abel.

A origem semidivina de Caim incitava-o a criar, pelo que cultivava o solo e colhia os frutos produzidos pelo seu  trabalho; esta criatividade desagradava a Jeová que via nele um rival, ao contrário de Abel que, por ser uma criação sua, era dócil e obediente,  limitando-se a cuidar do gado. Assim, Jeová desprezou as oferendas de Caim e aceitou as de Abel, o que deu origem a uma inimizade que levou ao assassinato deste último.

De nova união de Adão com Eva nasceu Seth, cujos descendentes seguiram os ditames do criador de seus pais, deles tendo saído sacerdotes e homens de fé, enquanto que de Caim descendiam homens de acção, criadores das artes, das ciências, das indústrias.

Façamos um salto destes primeiros tempos para os princípios do primeiro milénio antes de Cristo a fim de encontrarmos um descendente de Seth, Salomão (c. 974-937 a.C.),  o rei sábio, a quem Jeová mandou construir um templo esplendoroso em Jerusalém, mas que, por ser incapaz de o fazer, teve de contratar um descendente de Caim, Hiram Abiff, o mais hábil artífice e  mestre construtor.

A lenda maçónica identifica Hiram Abiff com o Sol, o qual, enquanto percorre os signos setentrionais, de Carneiro a Virgem, está entre amigos, mas quando desce para os primeiros signos meridionais, Balança, Escorpião e Sagitário, é atacado por três rufias e assassinado no Solstício de Inverno. Mas o Sol começa  a subir em direcção ao Equador; daí que, pela Lei da Analogia, Hiram Abiff seja ressuscitado pelo Espírito do Sol, o único com poder para tal, e comece, também, a subir, chegando ao Equador quando o Sol está exaltado em Carneiro, cujo símbolo é o martelo que Hiram Abiff levantava para que todos os artífices acorressem, solícitos, para acolher as suas ordens.

Passemos agora para a tradição Rosacruz.

Enquanto o rei Salomão reencarnou como Jesus de Nazaré, Hiram Abiff reencarnou como Lázaro – ou Lázaro-João, segundo Steiner - e, no século XIII, como Christian Rosenkreuz. Este entrosar maçónico-rosicrucianista simboliza a evolução iniciática do mestre construtor que liderou os artífices durante o período de Jeová, e que, depois de ter atingido o Reino de Cristo pelo  forte aperto da garra do leão, o Leão de Judá – ou seja, a iniciação conferida por Cristo - passou a ajudar os seus antigos companheiros a subir esta escada evolutiva, erguendo, agora, um novo símbolo, um martelo transmutado em cruz, ao qual associou a rosa.  

É esta a chave que permite abrir este sublime sinal do céu  narrado no mais profundo documento do Novo Testamento, segundo Rudolf  Steiner[26].

* * *

1.      Estava então doente um certo homem, Lázaro de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta.

2.      Maria era aquela que ungiu o Senhor com perfume e Lhe enxugou os pés com os cabelos; seu irmão Lázaro é que estava enfermo.

A unção do Senhor por Maria não ocorreu antes da “ressurreição” de Lázaro, como sugere o versículo 2, mas sim depois, como se diz em 12, 1-3.             

Do que dizem Lucas (10, 38-42) e João (12, 1-3), depreende-se que Maria e Marta eram duas irmãs muito diferentes: Maria era contemplativa, dócil, mística, enquanto Marta era operativa, trabalhadora, inquisitiva; Cristo não condenou o seu trabalho mas lembrou que além dos afazeres materiais há uma solicitação espiritualista. Assim, situo Maria na linha dos Filhos de Seth e Marta na dos Filhos de Caim, linhas estas que  se fundem no amor de ambas pelo seu irmão.

3.      Mandaram-Lhe, pois, dizer as duas irmãs: «Senhor, aquele que tu amas está enfermo».

4.      Ouvindo isto, Jesus disse: «Essa enfermidade não é de morte, é antes para a glória de Deus para que o Filho de Deus seja glorificado por ela».

5.      Ora Jesus amava Marta, sua irmã e Lázaro.

No Novo Testamento apenas é referido um discípulo que Jesus amou:  João. Assim, ao dizerem ao Senhor que aquele que amava estava enfermo, Maria e Marta referiam-se, certamente, a João; aliás, as duas mulheres nunca pronunciaram um nome, mas sempre a palavra irmão; por outro lado, o evangelista diz-nos que Jesus amava Lázaro. Daqui sai francamente reforçada a hipótese de Lázaro e João serem uma e a mesma pessoa.

Cristo sabia, naturalmente, que o seu amigo estava na fase final de uma iniciação, pelo que quis tranquilizar as irmãs. Diz  Steiner que a frase  para a glória de Deus  para que o Filho de Deus seja glorificado por ela” está mal traduzida, pois o que consta em grego é “para a manifestação de Deus, para que o Filho de Deus pudesse ser revelado desse modo[27]. Assim, o que Cristo quis transmitir às duas irmãs foi que a “enfermidade” de Lázaro iria servir  para que o divino existente em Si (Cristo) se extravasasse para a individualidade de Lázaro[28].

6.      Entretanto, ouvindo dizer que estava enfermo, ficou ainda dois dias no lugar onde estava.

Cristo sabia que o acto final da iniciação ainda não terminara; por isso deixou-se ficar.

    7.      Depois disse aos seus discípulos: «Vamos outra vez para a Judeia.»

8.      Disseram-Lhe os discípulos: «Rabi, ainda agora os judeus procuraram apedrejar-Te e tornas para lá?»

9.      Jesus respondeu: «Não há doze horas no dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo, 

10.  mas se andar de noite  tropeça, porque nela não há luz».

Os discípulos chamaram-lhe a atenção para os perigos que corria na ida para Betânia, mas Cristo desprezou-os porque, viajando de dia, ia com Deus, pois Deus é luz e n’Ele não há trevas, e que se andarmos na luz, como Ele está na luz, estamos em comunhão uns com os outros, como João iria explicar na sua Primeira Epístola (1, 5-7).

11.  Depois de ter falado assim disse-lhes: «Lázaro, o nosso amigo, dorme: mas vou despertá-lo».

Isto é, ia fazer com que o Ego regressasse ao corpo físico de Lázaro-João.

Segundo Steiner, este estado, necessário nas Antigas Iniciações, era artificialmente induzido pelo hierofante; no caso de Lázaro-João foi naturalmente provocado e deixou de ser necessário nas iniciações que ocorreram após a vinda de Cristo [29]. 

12.  Disseram então os Seus discípulos: «Senhor, se dorme, estará salvo».

13.  Jesus dizia isto da sua morte, mas eles pensaram que falava do sono natural.

14.  Então Jesus disse-lhes claramente: «Lázaro está morto

15.  e folgo, por amor de vós, por lá não ter estado, para que acrediteis: mas vamos ter com ele».

16.  Disse então Tomé, chamado Dídimo, aos companheiros: «Vamos nós também, para morrermos com ele». 

A morte a que Cristo se referia era simbólica. Diz Max Heindel que, quando um candidato está pronto para ser elevado a um nível superior, onde irá adquirir um poder maior do que possuía, tem de morrer para as coisas do passado. A via iniciática vai-se estreitando cada vez mais e o candidato não pode passar pelo estreito portão de acesso aos mais elevados domínios se não se despojar dos corpos que o correlacionavam com os inferiores; quando isto acontece, diz-se que está pronto para morrer [30].

Penso que quando Cristo disse, claramente, que Lázaro estava morto e que folgava, por amor dos discípulos, por lá não ter estado, para que eles acreditassem, se dirigia àqueles que ainda não estavam prontos para serem iniciados como Lázaro-João. Não era, porém, este o caso de Tomé que percebeu o que o Mestre queria referir e manifestou o seu desejo de morrer com Lázaro, isto é, de o acompanhar na mesma iniciação. E Tomé, mais do que convidar os outros discípulos, incitou os que ainda não estavam prontos, a prepararem-se para morrerem com Lázaro.

Cristo não respondeu, ou João omitiu essa resposta; havia que salvaguardar o prestígio dos discípulos que ainda não estavam prontos para essa iniciação.

17.  Ao chegar, Jesus verificou que já havia quatro dias que estava na sepultura.

18.  Ora Betânia distava de Jerusalém cerca de quinze estádios.

            Quando finalmente Cristo chegou a Betânia, Lázaro-João tinha já completado os seus três dias e meio de estado cataléptico; ia, portanto, no quarto dia de sepultura.

19.  E muitos judeus tinham ido até junto de Marta e de Maria para as consolar da morte do irmão.

20.  Ouvindo Marta dizer que Jesus estava a chegar, saiu-Lhe ao encontro: Maria, porém, ficou sentada em casa.

21.  Marta disse a Jesus: «Senhor, se Tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido!

22.  Mas também sei ainda agora que tudo quanto pedires a Deus, Deus To concederá».

23.  Jesus disse-lhe: «Teu irmão há-de ressuscitar».

24.  Marta, respondeu: «Eu sei que há-de ressuscitar na ressurreição do último dia».

As duas irmãs não sabiam o que se estava passando com o irmão; enquanto a contemplativa Maria orava em casa, a dinâmica Marta saiu ao encontro do Cristo e interpelou-o pelo facto de não ter estado ali e Lázaro ter morrido; mas não era insensível às solicitações espiritualistas e daí o ter manifestado a sua esperança de que o Senhor pedisse a Deus para ressuscitar o irmão. E quando o Cristo respondeu que Lázaro iria “ressuscitar”, retorquiu em conformidade com o que aprendera na doutrina ensinada ao comum dos mortais, a ressurreição do último dia.

25.  Disse-lhe Jesus: «Eu sou a ressurreição e a vida: quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá:

26.  e todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá. Crês tu isto?»

27.  Respondeu-Lhe ela: «Sim, Senhor, creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo».

            Steiner explica que, com estas palavras, Cristo quis dizer que ele era a ressurreição de Lázaro e a vida que este ia viver, para a qual iria ser acordado do seu sono cataléptico; assim, esta Vida Crística iria nascer em Lázaro-João[31], o que me parece ser mais um contributo para a minha teoria de que Christian Rosenkreuz é o segundo Paracleto.

28.  Dito isto, partiu e chamou Maria, sua irmã, à parte[32],  dizendo: «O Mestre está cá e chama-te».    

29.  Logo que ouviu isto, ela levantou-se e foi ter com Ele.

Ao chamar a irmã à parte, Marta quis evitar que os Judeus tomassem conhecimento de um assunto que somente a elas dizia respeito.

30.  Jesus ainda não tinha chegado à aldeia, mas estava no lugar onde Marta lhe falara.

31.  Vendo os judeus que estavam com ela em casa e a consolavam, que Maria se levantara apressadamente e saíra, seguiram-na dizendo: «Vai ao sepulcro para chorar ali».

32.  Ao chegar aonde Jesus estava, Maria lançou-se aos Seus pés assim que o viu, dizendo-lhe: «Senhor se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido!».

33.  Quando a viu chorar, e vendo também chorar os judeus que vinham com ela, Jesus comoveu-se profundamente e perturbou-se:

34.  depois perguntou: «Onde o puseste?»  Responderam-Lhe:  «Senhor, vem e vê».

35.  Jesus chorou.

36.  Disseram então os judeus: «Vede como  amava».

37.  Mas alguns dele disseram: «Não podia ele, que abriu os olhos ao cego, fazer também com que este não morresse?».

38.  De novo, intimamente comovido, Jesus chegou ao sepulcro. Era uma gruta e tinha uma pedra posta à entrada.

Considero esta passagem  uma das mais interessantes.

Cristo manifestou, por três vezes, determinadas emoções: primeiro comoveu-se  profundamente, depois chorou,  por fim mostrou-se de novo intimamente comovido. Interpreto esta significativa sequência de comoçãochorocomoção da forma que se segue.

Ao chegar ao local onde se iria concluir a iniciação, Cristo saiu dos corpos denso e vital de Jesus para, nos mundos espirituais,  transferir a sua força para o Ego de Lázaro-João e monitorizar, depois, o seu regresso aos corpos físicos; esta saída provocou uma determinada reacção em Jesus que os presentes notaram mas que terão tomado como uma profunda comoção e perturbação; pelo menos foram estes os termos que o autor deste evangelho escolheu para ocultar este passo da sua própria iniciação.

Por alguns momentos Jesus, o homem, ficou na posse de todos os seus corpos e, ao presenciar a primeira iniciação conferida por Cristo a um ser humano, emocionou-se e chorou, de facto.

Finda a sua tarefa nos mundos espirituais, Cristo reentrou nos corpos denso e vital de Jesus, o que provocou uma nova reacção que o evangelista referiu com a mesma metáfora, a de novo, intimamente comovido.

 Com os comentários citados no versículo 37, João apenas terá querido salientar o facto dos Judeus  ainda estarem longe de uma possível iniciação. 

 

39.  Jesus disse: «Tirai a pedra». Marta, irmã do defunto, disse-Lhe: «Senhor, já cheira mal, pois já tem quatro dias».

40.  Jesus respondeu-lhe: «Não te disse que se cresses verias a glória de Deus?».

            A Marta, uma filha de Caim,  faltava um certo misticismo para equilibrar o seu temperamento empreendedor, activo, logo, imbuído de um certo materialismo.

Quanto à expressão verias a glória de Deus, deverá ler-se verias a manifestação de Deus.

41.  Tiraram, pois, a pedra e Jesus, levantando os olhos aos céu, disse: «Pai, graças Te dou por me haveres ouvido.

42.  Eu bem sei que sempre me ouves, mas disse isto por causa da multidão que está em redor, para que creiam que Tu me enviaste».

            Cristo quis dar o exemplo a todos quantos pedem algo ao Pai:  agradecer-Lhe, com o mais profundo reconhecimento, a dádiva concedida ou apenas pedida.

            Quanto ao facto deste acto de gratidão ter sido proferido “por causa da multidão que está em redor, para que creiam que Tu me enviaste”, Steiner explica que o ponto alto da iniciação de Lázaro foi o ter sido levada a cabo em público, perante uma multidão, quando, de acordo com a antiga sabedoria, devia ter sido confinada ao secretismo dos mistérios; de facto, nesses tempos apenas os que “viam”, ou seja, os iniciados, conheciam algo do que se alcançava pela iniciação, mas a partir de então os segredos dos mundos superiores ficaram ao alcance dos que “não viam mas creram[33].

43.  Tendo dito isto, bradou em voz alta: «Lázaro, sai para fora».

44.  E o defunto saiu, tendo as mãos e os pés ligados com faixas e o rosto envolto num sudário. Disse-lhe Jesus: «Desligai-o e deixai-o ir». 

            Esta foi a primeira Grande Iniciação de Lázaro, como nos diz Max Heindel[34], ou do Apóstolo João, como pretende Steiner, ou do futuro segundo Paracleto, como eu penso.

 

CONCLUSÃO

           

Termino com outro evangelista e outro essénio, Lucas.

Como disse, Lucas relata duas “ressurreições”: a da filha de Jairo e a do filho da viuva de Nain, isto é, Lázaro-João.

A principal diferença entre estes dois acontecimentos é que a primeira “ressurreição” foi feita em grande segredo, apenas na presença de João, Tiago e dos pais da criança, aos quais, aliás, o Cristo ordenou que não contassem a ninguém o que tinha acontecido (Lc 8,56); porém, a segunda foi levada a cabo em público, presenciada pela grande multidão que acompanhava o Cristo e por muita gente da cidade de Nain que integrava o cortejo fúnebre.

Penso que com o relato destes dois “milagres” Lucas quis assinalar o fim de uma era e o início de outra: com a “ressurreição” da filha de Jairo, o fim das Antigas Iniciações, reservadas, apenas, a um grupo restrito de pessoas e levadas a cabo no mais rigoroso segredo; com a “ressurreição” de Lázaro-João, o início das Modernas Iniciações, acessíveis  a todos os homens e mulheres, como nos diz Max Heindel [35].

Dezembro de 2005

 


Bibliografia

 

§         Elsa Glover, An Interpretation of the Revelation to John, in Western Wisdom Bible Study, edição ebook  de The Rosicrucian Fellowship, Oceanside, CA, USA, s/data.

§         Max Heindel, Masonry and Catholicism, edição ebook de The Rosicrucian Fellowship, Oceanside, CA, USA, s/data.

§         Max Heindel, The Rosicrucian Philosophy in Question and Answers, (Q & A,), edição ebook de The Rosicrucian Fellowship, Oceanside, CA, USA, s/data.

§         Pierre Crépon, Les Évangiles Apocryphes, Editions Retz, Paris, 1983

 


 

Notas


[1] Nain , do grego Ναιν, Nain, com n final,.e não Naim como vem normalmente referido (v. nota 4 infra).

[2] In Q & A, vol. II, qq. 73 e 92

[3] Max Heindel, in Masonry and Catholicism,

[4] Diz Max Heindel em Masonry and Catholicism, Part VIII, The Path of Initiation, que Nain é um substantivo do plural cujo sufixo masculino assinala as faculdades positivas dos iniciados, que os Egípcios representavam com o símbolo ofídico do Uræus sobre a fronte; em contrapartida, os médiuns eram designados como Naioth, um substantivo do plural cujo sufixo feminino assinala as suas características negativas, sendo representados pelos Egípcios com o mesmo símbolo mas colocado sobre o umbigo. Naioth é, ainda, um topónimo que aparece em 1 Samuel 19, 19-24, para designar o lugar onde existia uma escola de profetas.

   Esclarece Max Heindel que a grafia Naim que aparece em traduções inglesas (e portuguesas também), é uma corrupção de Nain  porque este fonema em inglês é igual ao de nine (nove), e este é o grau dos Mistérios Menores que há que atingir para que a serpente (kundalini) se desenvolva por completo e o candidato possa aspirar aos Mistérios Maiores, um passo iniciático que havia que manter oculto.

[5] O Evangelho Secreto de Marcos é um dos artigos a colocar, oportunamente, nesta página.

[6] Cerinto, um  Egípcio coevo de João, é uma figura de muito interesse. Na Ásia Menor fundou uma escola para difundir a sua ecléctica doutrina de Gnosticismo, Judaísmo e Ebionismo. Admitia a existência de um Ser supremo, mas o criador deste mundo era um ser muito inferior, que nada tinha a ver com o Jeová dos Judeus. Cerinto distinguia Jesus, um homem de elevada santidade, do Cristo, um ser enviado pelo Supremo Deus, que entrara  no corpo de Jesus no momento do baptismo e dele saíra na cruz para  regressar aos céus.

[7] Será curioso referir que, em grego, presbítero e velho  têm uma origem comum, Πρεσβυτέριον (presbiutérion, conselho dos anciãos), de Πρέσβυς (presbius, velho, ancião) e que “Ancião” era precisamente o cognome do Apóstolo João. 

[8] Cf. o apócrifo Transitus Mariæ, cap. II (sec. IV ou V) in Les Évangiles Apocryphes, p. 61

[9] Éfeso foi uma importante cidade da Jónia, hoje Turquia, fundada pelos gregos no século XI a. C., ou pelas Amazonas, como prefere a lenda, e que nos princípios da nossa era  terá tido 250.000 habitantes, número surpreendente já que Atenas, no seu período áureo, tinha 200.000 habitantes.

   Éfeso foi famosa pelo seu grande porto marítimo, hoje totalmente assoreado, mas principalmente pelos numerosos e magnificentes santuários; o mais antigo era  dedicado a Cibele,  deusa-mãe da Frígia, que os Gregos Jónicos substituíram por Artemisa (Diana, para os Romanos), cujo templo, uma das Sete Maravilhas do Mundo, foi um dos principais lugares de peregrinação ao longo de um milénio. Depois de ter sido saqueada pelos Godos em 262 d.C., Éfeso perdeu o seu esplendor. Após um longo período de obscuridade, reconquistou uma certa notoriedade no século XIX; em 1822, a famosa vidente alemã Ann Catherine Emmerich (1774-1824) afirmou que a Virgem Maria tinha morrido em Éfeso e descreveu pormenorizadamente a casa onde vivera, indicando a sua localização no monte Panaya Kapulu,  bem como a da sua sepultura. Em 1892, os padres M. Poulain e Young exploraram a área indicada e encontraram, facilmente, as ruínas de uma casa que correspondia à descrição da vidente, mas não conseguiram descobrir a sepultura. A casa foi reconstruída e é hoje um local sagrado de peregrinação, diariamente visitado por cristãos, muçulmanos e fieis de outras confissões. 

[10] In An Interpretation of the Revelation to John, in Rays from the Rose Cross Magazine, September, 1977, p. 409-411; October, 1977, p. 459- 465; November, 1977, p. 503-504.

[11] Tertuliano foi o primeiro grande escritor  eclesiástico  em latim, não tendo ascendido à classe de Padres da Igreja por ter assumido, em 207, a liderança dos Montanistas, considerados hereges pela hierarquia eclesiástica dominante; no entanto, muitas das suas obras foram depois incluídas no corpo da literatura patrística..

[12] Compare Jo 12,1 com Mt 26,2 e Mc 14, 1-3.

[13] A carta de Clemente de Alexandria sobre o evangelho Secreto de Marcos não deixa dúvidas quanto à relação dos evangelhos com as escolas de Mistérios.

[14] No original grego Λογος, que na Vulgata vem traduzido como Verbum, Palavra.

[15] No original grego vem κατελαβεν, aoristo do verbo  καταλαμβάνω, o qual tem sido quase sempre traduzido como compreenderam, o que não me parece que exprima correctamente o sentido esotérico deste versículo. O verbo grego tem outros significados, como agarrar, apanhar de improviso, dominar, etc.  Penso que a tradução mais fiel seja a que utilizei, dominar.

[16] The Rosicrucian Cosmo-Conception,  p. 181.

[17] Παράκλητος (Paráclêtos).

[18] O realce é meu.

[19] O realce é meu.

[20] O realce é meu.

[21] Em grego, αλλον, outro, diferente.

[22] Q & A, II,  q. 96

[23] O Evangelho segundo João, p. 25.

[24] Em contrapartida, no Evangelho de Nicodemus, ou Actos de Pilatos, um apócrifo do século IV, Lázaro é referido em termos idênticos aos de João.

[25] O Evangelho segundo João, p. 122

[26] O Evangelho segundo João, p. 47

[27] Christianity as Mystical Fact, XIII. No original grego a palavra traduzida como glória é δόξα (doxa) que significa opinião, fama, glória, mas também manifestação.

[28] O Evangelho segundo João, p. 120

[29] Christianity as Mystical Fact, XIII.

[30] Q & A, II, q. 73.

[31] In Christianity as Mystical Fact, Part XIII

[32] Nas versões da Bíblia de que disponho vem  chamou Maria em segredo, tradução literal do grego λαθραι; porém este complemento circunstancial pode ser vertido para um português mais aceitável, como o que utilizei.

[33] Christianity as Mystical Fact, Part XIII

[34] Freemasonry and Catholicism

[35] The Rosicrucian Cosmo-Conception,  pp 404 e 405.


As opiniões expressas neste diretório são de inteira responsabilidade do autor .

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